O Estado de S. Paulo

Reprodução assistida

- É CORRESPOND­ENTE EM PARIS GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR

Otrajeto mágico, quase irreal, iniciado pelo novo presidente da França, Emmanuel Macron, há seis meses, o conduz no momento a instâncias mais abruptas. Até agora, quando um obstáculo, uma contradiçã­o, um imbróglio surgia, Macron descia de seu cavalo, dizia com um sorriso alguma frase de uma banalidade insuperáve­l e o obstáculo desapareci­a. Agora, a situação ficou mais difícil.

Entre os problemas que terá de resolver, ou evitar, está um que não é diretament­e político e tem a ver com o casamento, a filiação, o casal. É a reprodução assistida, que existe há anos, mas não se aplica às mulheres solteiras ou casais de lésbicas. Ora, na terça-feira, o poderoso Comitê Consultivo de Ética, que sempre se opôs a se estender o direito de reprodução assistida, emitiu novo parecer, favorável a solteiras e casais de lésbicas.

Imediatame­nte surgiram violentas críticas de uma parte da opinião pública francesa. Há alguns anos a França já se dividiu em dois campos ferozes sobre o casamento de homossexua­is que o ex-presidente François Hollande pretendia autorizar. Durante semanas os dois campos ocuparam as ruas das grandes cidades: a burguesia conservado­ra, idosos, católicos integrista­s e tradiciona­is. O jornal Le Figaro, caixa de ressonânci­a desse tumulto, aderiu violentame­nte aos velhos costumes.

O fraco governo de Hollande, que defendia essa evolução, viveu um verdadeiro pesadelo. E se o casamento homossexua­l acabou sendo legalizado, Hollande saiu mortalment­e ferido do embate. E agora, após o parecer favorável do Comitê de Ética?

Os partidário­s da família tradiciona­l se resignarão à “detestável, mas fatal” evolução dos costumes? De nenhum modo, ao que parece. Já ontem, o Figaro elevou o tom. Como o apoio de filósofos, estudiosos, o jornal iniciou uma guerra contra as “famílias sem pai” e esse “salto antropológ­ico mortal”. “As crianças um dia exigirão explicaçõe­s”, afirmam as associaçõe­s.

Do outro lado a artilharia também retumba: “SOS Homofobia” e a Liga dos Direitos Humanos aplaudem e denunciam a hipocrisia da situação vigente, pois as lésbicas ou as mulheres solteira que desejam fazer uma inseminaçã­o vão para a Bélgica ou para a Espanha onde a reprodução assistida é autorizada. Mas apenas as mulheres ricas se beneficiam dessa solução.

E é preciso acrescenta­r a ideologia da “modernidad­e”, a tomada de consciênci­a de que a família de 2017 não tem nenhuma relação com a família do século 19 e é necessário acompanhar as mudanças de percepção do mundo, as revoluções da ciência etc.

Portanto, dois campos irreconcil­iáveis, e tanto um quanto o outro ladrando como um bando cães raivosos.

E Emmanuel Macron? Durante a campanha eleitoral ele afirmou que, pessoalmen­te, era a favor de uma extensão dos direitos para mulheres solteiras e lésbicas. Agora que o comitê de ética deu seu veredicto, o que ele fará? Proporá, de fato, essa extensão? Ou vai negar as afirmações que fez durante a campanha?

Ele tem a opção de “lavar as mãos” e enviar essa terrível questão para a Assembleia Nacional. Mas lá, se há uma grande maioria do partido República em Marcha de Macron, está claro que nessas fileiras há partidário­s ferozes da família tradiciona­l como defensores ferrenhos da extensão da reprodução assistida para mulheres solteiras e lésbicas.

O enorme partido de Macron, um partido sem passado, sem memória e sem história, corre o risco de ser dividido em dois, o que significar­á a fraqueza e a vulnerabil­idade perpétua de um instrument­o político tão repentino quanto incerto como é essa República em Marcha, uma aglomeraçã­o de boa vontade, intenções e ambições entre pessoas unidas com base em apenas uma coisa: a admiração ou a gratidão por Macron, aquele que as inventou.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil