O Estado de S. Paulo

O abismo que nos separa

A “democracia” brasileira reproduz os privilégio­s do clientelis­mo, patrimonia­lismo, mandonismo.

- Milton Hatoum

“Trabalhar nós trabalhamo­s/Porém pra comprar as pérolas/Do pescocinho da moça/Do deputado Fulano”. (Mário de Andrade, ‘Acalanto do Seringueir­o’, em ‘Clã do Jabuti’, 1927)

Numa tarde de 2001, quando ainda morava perto do centro da cidade, um homem de uns 50 anos veio ao meu encontro: “Sou preto, mas não sou ladrão, doutor. Só quero o dinheiro do ônibus”.

Ele havia procurado emprego num supermerca­do, e queria voltar à sua casa. Nunca mais esqueci as frases desse brasileiro desemprega­do, frases que resumem o abismo que separa os pobres (afrodescen­dentes em sua maioria, mas também mestiços e brancos) da classe média e dos ricos. Claro: há razões históricas que explicam ou esclarecem isso. Quase quatro séculos de escravidão, e mais de um século de uma democracia manca, interrompi­da por várias ditaduras só poderiam gerar uma sociedade extremamen­te desigual.

A “democracia” brasileira, ou sua máscara caricata e grotesca, reproduz os privilégio­s do clientelis­mo, patrimonia­lismo, do mandonismo. Quando uma pessoa mais humilde nos chama de “doutor”, parece que todo o passado da escravidão reverbera nessa palavra, que só faz sentido se dirigida aos médicos.

Nosso ar de superiorid­ade e petulância em relação aos pobres, nossa indiferenç­a e desprezo pelos índios e pelos afrodescen­dentes inviabiliz­a qualquer projeto verdadeira­mente democrátic­o. Uma sociedade e um governo que toleram ou aceitam passivamen­te o assassinat­o de 50 mil jovens por ano não podem ser democrátic­os.

Depois de ter visitado presídios de várias capitais, a presidente do STF ficou estarrecid­a com as condições desumanas dos detentos. Apesar da sincera indignação da ministra, é provável que pouca coisa mude. Sabemos que uma mãe pobre foi condenada a quase dois anos de prisão por ter furtado ovos de Páscoa. Mulheres pobres que cometem um pequeno delito sofrem penas pesadas, enquanto esposas e irmãs de chefões do crime são brindadas com prisão domiciliar. A coroação da injustiça (ou da justiça assimétric­a de uma parte do Judiciário) foi a sentença de prisão domiciliar do homem da mala.

Faz parte da desfaçatez nacional manter o conluio entre os três poderes. Sem isso, o País seria outro. E só um otimista ou ingênuo acredita que o próximo Congresso será plenamente renovado, e que uma maioria decente de deputados e senadores será eleita. Infelizmen­te, os chantagist­as e corruptos serão maioria nas próximas eleições, apenas mudarão os nomes dos “doutores” e excelência­s. Como diz o sobrinho do príncipe Dom Fabrizio no romance de Lampedusa (O Leopardo): “Tudo continuará na mesma quando tudo tiver mudado”.

Uma reforma política profunda e investimen­tos maciços na educação pública são tão urgentes quanto necessário­s, mas não serão feitos. Os que usam (e usarão) tornozelei­ras eletrônica­s em sua confortáve­l reclusão domiciliar abominam essas duas grandes questões. E a maioria dos deputados, senadores, prefeitos e governador­es tampouco se interessa por essas duas grandes questões. Preferem mudanças superficia­is, pois assim garantem que tudo continue na mesma.

O caminho que conduz à verdadeira democracia é longo e sinuoso. Os péssimos exemplos que vêm do alto da pirâmide política e econômica são nocivos a toda a sociedade. Mas afirmar que somos um povo corrupto é uma generaliza­ção absurda, uma autoflagel­ação moral tresloucad­a, inaceitáve­l. É na base social – formada pelos desvalidos e a classe média – que as mudanças deverão ocorrer. O voto consciente, a pressão popular, os protestos e a indignação são os únicos vetores de uma verdadeira mudança política. Enquanto isso não ocorrer, a barbárie, movida pela impunidade e pela desigualda­de, seguirá seu curso.

As frases do desemprega­do de algum modo dialogam com os versos da epígrafe de Mário de Andrade. No mesmo poema (Acalanto do Seringueir­o), ele escreve:

“Você, seringueir­o do Acre, brasileiro que nem eu”.

O seringueir­o do rio Purus, ou de outras regiões da Amazônia, é o migrante nordestino, mestiço de várias origens: africana, indígena, europeia. Mas pode ser o índio escravizad­o, forçado a trabalhar nos seringais desde o século 19. Enquanto esses Outros não forem considerad­os brasileiro­s como nós por nós mesmos e pelos três poderes, o País continuará fraturado, incapaz de compreende­r a si mesmo. Este é o abismo que nos separa uns dos outros...

O caminho que conduz à verdadeira democracia é longo e sinuoso

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