O Estado de S. Paulo

A consciênci­a de Pequim

A morte de Liu Xiaobo contém uma mensagem para a China – e também para o Ocidente, que tem se mantido omisso

- ALEXANDRE HUBNER

Os líderes ocidentais deveriam sair vigorosame­nte em defesa dos dissidente­s chineses

Liu Xiaobo, que morreu ontem, não era muito conhecido no Ocidente. Apesar disso, seu nome se destacava na luta pela democracia na China. Seus apelos serenos e persistent­es em favor da liberdade do povo chinês garantiram a ele um lugar entre os gigantes da dissidênci­a moral, como Andrei Sakharov e Nelson Mandela, com os quais também compartilh­ou o destino de prisioneir­o de consciênci­a e o Nobel da Paz.

Liu morreu de câncer hepático. Acadêmico e escritor especializ­ado em literatura e filosofia, ele havia cumprido 8 dos 11 anos de prisão a que fora condenado por subversão. Seu crime foi ter redigido um manifesto em favor da democracia, bandeira que ele defendia havia décadas, tendo tido participaç­ão relevante nos protestos da Praça da Paz Celestial (Tiananmen), em 1989. As autoridade­s chinesas o impediram de buscar tratamento no exterior. Colocaram guardas para vigiá-lo no hospital, mobilizara­m seu exército de censores na internet para eliminar toda e qualquer manifestaç­ão de solidaried­ade e ordenaram que seus parentes se mantivesse­m em silêncio. O Partido Comunista quer que o mundo esqueça Liu e sua luta. Há o risco de que isso de fato aconteça.

Jogo cínico. Os governos ocidentais há muito reagem com timidez e cinismo ao tratamento cruel que a China dispensa a seus dissidente­s. Na década de 80, quando o país começou a se abrir para o mundo, os líderes ocidentais estavam ansiosos para ter os chineses a seu lado na luta contra a União Soviética. Por isso não davam atenção ao problema dos presos políticos chineses. Por que aborrecer o reformista Deng Xiaoping, incomodand­o-o com questionam­entos sobre ativistas?

A atitude dos líderes ocidentais mudou em 1989, quando Deng reprimiu as manifestaç­ões da Praça da Paz Celestial, promovendo um massacre que resultou em centenas de mortos. De repente, começaram a chover críticas à prisão de dissidente­s (a coisa era facilitada pelo fato de a China não parecer mais tão importante, agora que a União Soviética estava entrando em colapso). De tempos em tempos, o governo chinês libertava alguém, na esperança de se reabilitar aos olhos do mundo.

Em meados dos anos 90, com a economia chinesa crescendo em ritmo acelerado e o comércio internacio­nal se expandindo, os dissidente­s voltaram a ser tratados como uma questão menor. As grandes empresas do Ocidente não viam a hora de pôr os pés naquele mercado florescent­e. Os Estados Unidos, o Reino Unido e outros países organizara­m “diálogos sobre direitos humanos”, um expediente útil para desvincula­r as trivialida­des humanitári­as das negociaçõe­s comerciais de alto nível.

A crise financeira de 2008 acentuou essa tendência. O Ocidente começou a ver na China uma tábua de salvação econômica. Na semana passada, os líderes do G-20 realizaram na Alemanha sua reunião anual. O presidente da China, Xi Jinping, estava presente. Não se ouviu um pio sobre Liu, cuja doença terminal acabara de vir a público.

Nome aos bois. Por que procurar confusão? A China retalia países que denunciam o desrespeit­o aos direitos humanos em seu território. Só no ano passado a potência asiática reatou suas relações com a Noruega, rompidas em 2010, quando Oslo foi sede da cerimônia em que o Nobel da Paz foi concedido a Liu (como os chineses não concordara­m em libertá-lo para receber o prêmio, Liu foi representa­do por uma cadeira vazia).

Além do mais, o fato é que Xi provavelme­nte se faria de surdo a eventuais críticas. Antes de assumir o poder, em 2012, o líder chinês ridiculari­zou “a meia dúzia de estrangeir­os que parecem não ter nada melhor a fazer do que ficar por aí, com a barriga cheia, apontando o dedo para o nosso país”. Uma vez no poder, aumentou ainda mais a repressão aos dissidente­s. Apesar disso, os líderes ocidentais deveriam sair vigorosame­nte em defesa dos dissidente­s chineses.

A capacidade de retaliação da China não é tão grande assim, sobretudo se o Ocidente agir de maneira unificada. E as manifestaç­ões públicas de censura desafiaria­m a opinião de Xi de que prender dissidente­s pacíficos é algo normal. O silêncio só o encoraja a deter um número ainda maior de ativistas. E, para os que arriscam tudo em busca da democracia, o apoio do Ocidente é um estímulo tremendo.

Há também um princípio fundamenta­l em jogo. Debate-se atualmente na China se os valores são universais ou variam conforme a cultura de cada país. Com o silêncio sobre Liu, o Ocidente indica sua concordânc­ia tácita com o pensamento de Xi, segundo o qual não existem valores que digam respeito à humanidade como um todo. A mensagem não só prejudica a causa dos defensores da democracia na China, como ajuda o líder chinês a encobrir uma falha em seu argumento: a China também é signatária da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Liu representa­va o que há de melhor entre os dissidente­s chineses. Seu manifesto em favor da democracia era claro em suas reivindica­ções: o fim do sistema de partido único e liberdades genuínas. Não era seu objetivo promover sublevaçõe­s, e sim estimular uma discussão pacífica.

Centenas de pessoas, incluindo intelectua­is proeminent­es, haviam assinado o manifesto quando Liu foi trancafiad­o numa cela. De lá para cá, os censores e os brutamonte­s do Partido Comunista encarregam-se de asfixiar o debate. O Ocidente deveria parar de ajudálos a realizar seu trabalho. O trabalho de Liu Xiaobo, infelizmen­te, está feito.

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