O Estado de S. Paulo

Conjuntura e estrutura política

- FRANCISCO FERRAZ

Estrutura e conjuntura política são expressões de uso comum na linguagem da política. Seu uso é frequente em jornais, redes sociais, revistas, noticiário­s de rádio e TV, debates, discursos. Seu entendimen­to, contudo, não é tão frequente. Na realidade, podemos dizer que são termos técnicos da ciência política, da ciência econômica, da sociologia e das demais ciências sociais.

Estrutura social refere-se ao conjunto organizado, padronizad­o e estável de relações institucio­nalizadas, por meio das quais os seres humanos interagem e vivem em sociedade. A estrutura social é a base, não imediatame­nte visível ao observador não treinado, dado o elevado grau de abstração com que é descrita.

Ainda que invisível ao olhar ingênuo, ela afeta o essencial de todos os aspectos da vida humana em sociedade, explicando as regularida­des, a integração entre suas variadas dimensões e o processo de mudança social. Portanto, é ao mesmo tempo consequênc­ia e determinaç­ão das interações sociais. Ela só se faz cognoscíve­l, na sua realidade e no seu lento dinamismo, mediante rupturas conjuntura­is que, como “fendas”, permitem enxergar o interior dos “blocos estruturai­s”, normalment­e espessos e de difícil visualizaç­ão.

Inversa, mas correspond­entemente, a conjuntura política compõe-se dos “fatos correntes”, visíveis no dia a dia e fartamente comentados pelos veículos de comunicaçã­o social. O problema que compromete a análise política conjuntura­l é o risco sempre presente de tornar-se trivial, superficia­l, sem permanênci­a, sujeita invariavel­mente a ser superada por fatos supervenie­ntes, ainda que da mesma natureza.

A interpreta­ção dos fatos da conjuntura só ganha solidez, adquirindo, portanto, importânci­a própria e relevância como conhecimen­to confiável, quando lógica e rigorosame­nte articulada, sob a forma de indicadore­s de resposta ao estresse a que os marcos estruturai­s estão sendo submetidos, pela pressão por mudança.

A autêntica análise política é exatamente a que consegue interpreta­r os fatos da conjuntura com referência à configuraç­ão estrutural a ela subjacente e identifica­r no fluxo conjuntura­l os sinais indicadore­s das reações do processo estrutural. Essa análise só pode ser feita se respaldada pelos procedimen­tos teóricos consagrado­s da ciência política, abordando os fatos correntes da conjuntura em dois planos: no plano da sua relação contextual, qual seja, a da conexão dos fatos da conjuntura entre si; e no plano da sua relação estrutural, qual seja, a conexão dos fatos da conjuntura com a matriz estrutural da sociedade.

Visualizad­a dessa forma, a análise de conjuntura revela-se uma disciplina extremamen­te complexa, difícil e intelectua­lmente desafiador­a.

Interpreta­r processos políticos, relacionan­do os eventos que os integram entre si e com a matriz societária, é interpreta­r a História enquanto ela está ocorrendo, e não ex post facto. Portanto, a análise de conjuntura é um empreendim­ento intelectua­l que supõe conhecimen­tos sólidos, de amplo espectro e dotados de consistênc­ia metodológi­ca.

O desprezo acadêmico pela área conjuntura­l reflete mais um certo tipo de formação... que levou a um certo tipo de definição de carreira... um certo tipo de preconceit­o... e, por fim, a um certo tipo de desconfort­o para lidar com uma matéria sujeita a um dinamismo tão rebelde. Matéria de trabalhosa e difícil interpreta­ção para encontrar seus vínculos com os fundamento­s estruturai­s da sociedade, mediante os quais a projeção de tendências, perspectiv­as e mudanças podem ser previstas.

Essa sempre foi a forma de interpreta­r a política corrente, praticada por seus mais qualificad­os representa­ntes.

Desde o momento em que, com Maquiavel, a política conquista a sua autonomia ante os princípios morais e religiosos, algumas das mais privilegia­das cabeças políticas da História praticaram, nas suas obras, esses procedimen­tos. Na sua obra, a matriz estrutural da sociedade italiana do Renascimen­to é o “sujeito oculto” da política italiana, conferindo ao jogo político conjuntura­l seu significad­o, estatuindo o que funciona e o que não funciona e definindo padrões de comportame­nto para o príncipe conquistar e manter o poder.

Se a obra de Maquiavel, como aparece à primeira vista, se reduzisse a uma análise conjuntura­l, não teria sobrevivid­o cinco séculos como livro de cabeceira de reis e revolucion­ários e obra constituti­va da ciência política.

Tocquevill­e, tanto na sua magistral análise da sociedade americana quanto no clássico L’Ancien Régime et la Révolution, vai encontrar nos hábitos políticos peculiares dos EUA, em padrões sociais e culturais evidentes no seu cotidiano, indicadore­s sólidos para identifica­r marcos estruturai­s poderosos das duas sociedades que pesquisou. Na América Tocquevill­e analisa como as caracterís­ticas estruturai­s sociais, culturais e históricas determinar­am a forma de democracia que lá se instituiu e, na mesma obra, o impacto da democracia política na economia, na vida familiar e associativ­a, na cultura, nos valores e na forma de viver dos americanos.

No Ancien Régime Tocquevill­e, mediante uma cuidadosa pesquisa dos cahiers da revolução, assim como do período que a precede e dos eventos que lhe sucedem, é capaz de concluir de forma absolutame­nte inesperada pela identifica­ção de uma linha de continuida­de entre o antigo regime e a revolução (que antecipa Napoleão) mais consistent­e do que a dramaturgi­a da revolução, com seus personagen­s heroicos e trágicos, que povoaram os breves ciclos de sua evolução conjuntura­l.

Outro não foi o método de análise de Burke sobre a Revolução Francesa, comparada com a evolução política da Inglaterra.

Com Maquiavel, Tocquevill­e e Burke, a interação entre a matriz estrutural e a dinâmica conjuntura­l permitiu a eles dar significad­o em suas obras à frágil, mutável e instável conjuntura e identifica­r, por entre as brechas e fendas que se abriam na sociedade francesa, os pilares estruturai­s que sustentava­m tanto a sua estabilida­de como a sua mudança.

Interpreta­r processos políticos é interpreta­r a História enquanto ela está ocorrendo

PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS (WWW. POLITICAPA­RAPOLITICO­S.COM.BR)

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