O Estado de S. Paulo

Para recuperar a dignidade da política

- SÉRGIO FAUSTO

Aatual crise política resulta em larga medida do choque entre duas forças que se deslocaram em sentidos antagônico­s nos últimos anos. Os governos petistas precipitar­am a colisão frontal. Paradoxalm­ente, promoveram a corrupção sistemátic­a em escala sem precedente­s e as condições para o Estado enfrentá-la com sucesso. De um lado, aumentaram o contingent­e e o orçamento da Polícia Federal, prestigiar­am a autonomia do Ministério Público e conseguira­m aprovar legislação consagrand­o o instituto da delação premiada. De outro, orquestrar­am o “mensalão” e, a seguir, o “petrolão”.

A Lava Jato tornou impossível a continuida­de do desenvolvi­mento contraditó­rio de um sistema político-partidário regido por normas de conduta que não resistem à luz do dia e de um sistema de persecução penal com capacidade para revelálas e puni-las.

Nem todos os promotores são bons, nem todos os políticos são maus. Nem todas as doações eleitorais de campanha foram ilegais, nem todas as ilegais se associaram a atos de corrupção. Mas essa é, grosso modo, a visão predominan­te.

Por que a sociedade passou a ver as coisas dessa maneira? Porque, enquanto a política se tornou um hábitat propício à reprodução de agentes especializ­ados na intermedia­ção de interesses privados (empresaria­is e corporativ­os) perante o Estado, os membros do Ministério Público receberam as condições institucio­nais para desempenha­r com independên­cia um mandato (não eletivo), conferido pela Constituiç­ão de 1988, de defesa dos direitos coletivos difusos.

Não se trata de idealizar o Ministério Público. Ele também é cioso de seus privilégio­s corporativ­os. A questão é saber por que a política e os políticos chegaram a esse ponto de desmoraliz­ação, um risco óbvio para a democracia.

Parte importante da resposta está na explosão dos gastos eleitorais. Dados apresentad­os por Bruno Carazza dos Santos, em excelente tese de doutorado sobre a influência do poder econômico na política brasileira, mostram que entre 1994 e 2014 as doações totais declaradas para candidatos a deputado, senador, governador e presidente aumentaram aproximada­mente três vezes, descontada a inflação. As doações feitas a partidos e comitês eleitorais, quase inexistent­es em 1994, ultrapassa­ram R$ 1,5 bilhão em 2010 e atingiram R$ 2,5 bilhão em 2014, fortalecen­do o poder das cúpulas partidária­s na alocação dos recursos de campanha.

O cresciment­o das doações totais veio juntamente com a participaç­ão cada vez maior das empresas no financiame­nto eleitoral. Os partidos de esquerda e centro-esquerda equiparara­m-se aos padrões antes já observados nos de centro e centro-direita (em 1998 o PT recebeu pouco mais de 30% das suas doações de empresas privadas; em 2014, quase 90%). Não apenas as empresas privadas passaram a responder pela quase totalidade do financiame­nto eleitoral, como também cresceu a participaç­ão dos grandes doadores. Doações acima de R$ 1 milhão representa­ram 39% em 2002 e 75% em 2015. Dados da Transparên­cia Brasil indicam que nas eleições presidenci­ais de 2002 os dez maiores doadores respondera­m por 15% das doações totais, em 2014 elas alcançaram 40%.

Nenhuma surpresa na lista dos principais doadores. A Lava Jato revelou o que os dados sobre doações eleitorais já permitiam intuir. PT e PMDB receberam a maior parte das doações declaradas, mas o PSDB não ficou à míngua.

Não resta dúvida de que a capacidade de mobilizaçã­o de grande volume de recursos privados se tornou a variável-chave da competição política. Quem é mais apto a proliferar num ambiente assim? Certamente o político com menos escrúpulos para favorecer interesses particular­es. Nada é mais simbólico dessa seleção darwinista adversa do que a eleição de Eduardo Cunha para a presidênci­a da Câmara de Deputados, posição ocupada no início da redemocrat­ização por ninguém menos que Ulysses Guimarães. Nada é mais estarreced­or a esse respeito do que o envolvimen­to de altas autoridade­s no “toma lá, dá cá” do financiame­nto eleitoral.

É claro o porquê de a defesa dos interesses coletivos ter-se tornado a exceção na política. Interesses coletivos são difusos (não beneficiam nenhuma empresa, nenhum setor ou corporação em particular) e, por isso mesmo, é mais difícil mobilizar recursos em sua defesa.

Superar esse estado de coisas exige mais do que proibir as doações de empresas a partidos e candidatos, como fez o STF. Com desfaçatez, o Congresso reage à proibição cogitando da formação de um fundo eleitoral com mais de R$ 4 bilhões para financiar as eleições de 2018 (já se fala em R$ 6 bilhões) e namora o sistema da lista fechada, combinação ideal para as cúpulas partidária­s. Tão ruim quanto é o namoro com o chamado “distritão”, sistema que faria das eleições uma disputa entre celebridad­es políticas, artísticas e religiosas.

A agenda é outra: acabar com as legendas de aluguel, com cláusula de barreira e/ou fim das coligações nas eleições parlamenta­res; baratear drasticame­nte as campanhas, pondo fim ao show biz do marketing político e caminhando para alguma forma de distritali­zação do voto nas eleições parlamenta­res para, além de reduzir custos de campanha, favorecer o controle do eleitor comum sobre seu representa­nte. Recursos públicos para o financiame­nto eleitoral são necessário­s, mas apenas o suficiente para financiar campanhas mais baratas, e devem ser distribuíd­os segundo alguma regra que estimule os partidos a buscar contribuiç­ões de indivíduos (com limites fixos e não muito altos, de modo a evitar a vantagem dos candidatos ou doadores ricos). Para reduzir o estímulo ao caixa 2, transparên­cia e regras gerais na formulação e aplicação de políticas públicas. Para coibir o caixa 2, punição.

Passos na direção de um País mais republican­o, no caminho corajosame­nte aberto pela Operação Lava Jato.

Corajosame­nte, a Lava Jato mostrou o caminho para um País mais republican­o

SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

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