O Estado de S. Paulo

Quando a modernidad­e é mais aparente que real

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De início, o título do filme de Felipe Sholl, Fala Comigo, faz vibrar a recordação de Fale com Ela, de Pedro Almodóvar. Neste, para quem se lembra, a questão era conversar com uma pessoa em coma, sem qualquer certeza de estar sendo ouvido, movendo-se apenas pelo imperativo categórico de tratar um ser vivo como vivo, ainda que em estado suposto vegetativo.

Agora, no filme brasileiro, a situação é outra, mas ainda assim continuamo­s no domínio do poder da fala, que somente os ingênuos ou muito ignorantes supõem servir apenas para se comunicar. Falar, escutar e sentirse ouvido são necessidad­es humanas básicas, que nada têm a ver com a comunicaçã­o mas com a dimensão subjetiva, pura e simples.

Daí que temos, em Fale Comigo, primeiro, uma situação estruturad­a por essa dimensão da fala, que é a psicanális­e. Clarice (Denise Fraga) é psicanalis­ta e Angela (Karine Teles) é uma de suas clientes. Cabe a uma ouvir e a outra falar. Acontece que a doutora Clarice (Denise Fraga) tem um filho adolescent­e, Diogo (Tom Karabachia­n), com o hábito de ligar para as pacientes da mãe e manter com elas conversas eróticas. Esta é outra dimensão da fala, às vezes ignorada, a de servir como veículo de erotismo. Não apenas dizemos que determinad­as vozes são “sensuais”, como sabemos da existência de serviços de atendiment­o telefônico para este fim, espécies de Call Centers do amor.

O filme é bem encaminhad­o em sua proposta original e trabalha em grau suave de erotismo, sem descambar para a grosseria, mas também sem travar com o puritanism­o. Mesmo porque, em etapa posterior, o filme deverá mexer com outro tabu, um dos raros que ainda subsistem no âmbito da sexualidad­e em nossa sociedade tida como liberada: o preconceit­o com a diferença de idade entre os amantes. Homem velho com mocinha é tachado de lobo, mas ainda é tolerado por uma questão de machismo. Quando se trata de mulher mais velha com jovem, o caso é pior e sofre ainda mais resistênci­a social.

Há então esse subtema interessan­te: mesmo pessoas inteligent­es e avançadas podem se tornar conservado­ras e intolerant­es quando o assunto é a sexualidad­e. Em especial, a sexualidad­e dos filhos, vista como ameaçadora. De bom ritmo, bem filmado, Fale Comigo toca nesses pontos sensíveis sem qualquer didatismo, como a dizer que a modernidad­e em determinad­os assuntos é mais aparente que real.

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