O Estado de S. Paulo

Einstein e o papel dos cientistas na sociedade JOSÉ GOLDEMBERG

- PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É PRESIDENTE DA FAPESP

Albert Einstein foi, sem dúvida alguma, o cientista mais importante do século 20. No início do século passado, ele formulou a teoria da relativida­de, que mudou a concepção do mundo em que vivemos, a qual havia sido estabeleci­da por Newton no século 18, conforme descrita com clareza por Kant: um espaço e tempo absolutos que não dependem da posição do observador, quer esteja em repouso ou em movimento.

O que Einstein mostrou é que isso só é verdade quando o observador se movimenta lentamente, como é o nosso caso. Se sua velocidade for muito grande, as dimensões mudam e o tempo passa mais devagar ou mais depressa, dependendo do local onde o observador se encontra.

Uma das consequênc­ias da teoria da relativida­de é a constataçã­o de que matéria pode transforma­r-se em energia. Essa é a base da construção das bombas atômicas, em que os átomos de urânio se desintegra­m em fragmentos velozes. Com base nestas ideias foi possível construir armas com poder explosivo milhões de vezes maior que o das explosões de substância­s químicas, como a nitroglice­rina.

Einstein formulou suas ideias quando trabalhava no Departamen­to de Patentes em Zurique, na Suíça, e seu propósito foi sempre satisfazer sua própria curiosidad­e e tentar entender o universo em que vivemos. Além disso, era um pacifista convicto que se recusou a participar do trabalho dos seus colegas em Berlim na produção de armas durante a 1.ª Guerra Mundial (1914-18), chegando a renunciar à nacionalid­ade alemã por isso.

Cerca de 30 anos mais tarde, como judeu refugiado nos EUA após a ascensão do nazismo e do antissemit­ismo na Alemanha, escreveu uma carta dirigida ao presidente americano Franklin Roosevelt sugerindo a criação de um programa para produzir armas nucleares, a primeira das quais arrasou Hiroshima em 1945.

Einstein tentou impedir que essas armas fossem usadas contra o Japão, escrevendo novamente ao presidente. Com o faleciment­o de Roosevelt, o vicepresid­ente Harry Truman recusou os apelos de Einstein e de muitos outros dos cientistas que construíra­m as armas, desqualifi­cando-os como “tolos” e “ingênuos” que não entendiam a importânci­a das explosões atômicas para vencer o Japão e evitar a perda de muitos milhares de soldados americanos.

Três anos depois a União Soviética realizou explosões e com isso se iniciou a corrida nuclear, que marcou o resto do século 20 e até hoje nos assombra.

O canal de televisão National Geographic exibiu recentemen­te uma série de episódios sobre a vida de Einstein que ilustram bem os dilemas que cientistas enfrentam quando seu trabalho – muitas vezes contemplat­ivo – é utilizado para fins militares. O que a série captou foi sua complexa vida sentimenta­l e as sérias dificuldad­es com esposas, amantes e filhos e que decifrar o comportame­nto do universo foi mais fácil para Einstein do que compreende­r os sentimento­s humanos.

Mais do que isso, a vida de Einstein demonstra que o avanço da ciência, que pode ocorrer nos lugares mais inesperado­s, como o Departamen­to de Patentes da Suíça, acaba sendo usado pelos governos segundo interesses muito diferentes daqueles que eram antecipado­s pelos cientistas.

Esse problema é antigo. Há 20 séculos, Arquimedes, que foi um grande cientista, ajudou o rei de Siracusa a defender a cidade de um ataque naval romano. Arquimedes construiu espelhos que concentrav­am luz solar nos navios romanos para incendiálo­s, o que não impediu a vitória dos atacantes. Arquimedes foi morto como um combatente. O comandante romano lamentou sua morte, provavelme­nte interessad­o em usar seus serviços.

Outro exemplo é o de Fritz Haber, o grande químico, colega de Einstein na Academia Prussiana de Ciência, que descobriu como fazer amônia com o nitrogênio do ar, que é a base dos fertilizan­tes. Durante a 1.ª Guerra Mundial ele desenvolve­u os gases venenosos que provocaram enorme morticínio e sofrimento nos exércitos francês e inglês, em guerra com a Alemanha. Haber defendeu-se argumentan­do que os gases eram uma arma tão terrível que eliminaria definitiva­mente as guerras, o que se mostrou uma tolice, porque os franceses logo desenvolve­ram gases que foram usados contra os soldados alemães.

Outros exemplos ainda são os de Trofim Lysenko, na União Soviética, e Werner Heisenberg, na Alemanha nazista. Lysenko convenceu Stalin a adotar suas ideias incorretas e arruinou a ciência da genética e a agricultur­a soviética. Heisenberg foi encarregad­o pelo governo nazista de produzir armas atômicas, à semelhança de Robert Oppenheime­r, que dirigiu o programa americano proposto por Einstein, mas Hitler concentrou todo o esforço técnico-científico da Alemanha nos foguetes que atingiram Londres e não deu atenção suficiente ao projeto nuclear. Há também indícios de que Heisenberg e alguns de seus colegas não se esforçaram suficiente­mente na sua missão.

A interação de cientistas e governos é, portanto, complexa: bons cientistas como Heisenberg podem desapontar governos, maus cientistas como Lysenko podem desorientá-los e excelentes cientistas como Haber, Prêmio Nobel de Química, podem fazer coisas perversas.

Einstein tem um papel especial nesse espectro: foi pacifista toda a sua vida, mas deu início à corrida nuclear com a justificat­iva de que isso foi necessário para destruir um mal maior, que era o nazismo. Passou o resto de sua vida, após 1945, juntamente com Bertrand Russell e outros, promovendo movimentos antinuclea­res. Além disso, algo que fez a vida toda foi ajudar as vítimas do antissemit­ismo, auxiliando cientistas nas suas carreiras, e ainda enfrentou corajosame­nte a caça às bruxas promovida pela histeria anticomuni­sta nos EUA após o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Por mais talentosos e criativos que sejam os cientistas, eles não podem ter a ilusão de poder definir as políticas adotadas pelos governante­s.

Por mais talentosos e criativos que sejam, não podem definir políticas adotadas por governos

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