O Estado de S. Paulo

Violência já interrompe­u aulas em 25% das escolas municipais do Rio neste ano

Segurança pública. Colégios vivem rotina de tensão, com toques de recolher, assaltos e operações policiais contra o tráfico de drogas; aluno de 7 anos conta que ‘não está nem aí’ para disparos, e famílias levam filhos para a aula em dias de ‘tiroteios bra

- Constança Rezende /

David de Souza, um garoto de 7 anos e cabelos pretos com mechas louras, já se acostumou. Os tiros, frequentes na região onde fica a escola Professor Carneiro Ribeiro, em Ramos, na zona norte do Rio, não o impedem de ir à escola. Ela fica perto de uma das entradas do Complexo do Alemão e recebe, por dia, 430 alunos – 90% oriundos da comunidade. “Tô nem aí”, diz a criança. “Não tenho nem medo de tiro mais. Antes eu tinha.” A própria unidade onde estuda já foi alvo: em uma das janelas da administra­ção, uma vidraça exibe buraco aberto por um projétil.

O tiro, por sorte, foi disparado durante confronto em um sábado, dia em que não havia aulas ou crianças. Não feriu ninguém. Em 2017, a escola já teve de cancelar passeio de alunos a um museu. Na véspera, um dos chefes do tráfico na região foi morto, e o comércio foi obrigado, por criminosos, a fechar.

“Foi um passeio difícil de agendar. O ônibus já estava em frente à escola esperando as crianças chegarem, mas as famílias decidiram não trazer os alunos porque ficaram com medo”, conta a diretora da unidade, Claudia Goldbach.

A direção passou a anotar “falta justificad­a” para alunos em dias de confronto. É como se estivessem doentes e apresentas­sem atestado médico para justificar a ausência. “É uma solução burocrátic­a, mas os alunos acabam deixando de aprender o conteúdo. Sempre orientamos que não venham em dias de tiroteio. Mas, infelizmen­te, as famílias normalizar­am tanto essa realidade que, em dias de tiroteios brandos, as crianças vêm para a escola”, diz Claudia.

Segundo a Secretaria Municipal de Educação, de 105 dias do ano letivo (até quinta), a rede funcionou sem interrupçã­o por episódios violentos (tiroteio, toque de recolher, assalto, operação policial) em só oito. Além disso, 382 das 1.537 escolas – uma em cada quatro – tiveram de fechar ou interrompe­r atividades

pelos mesmos motivos.

“Ensinamos tanto sobre direitos e deveres para os alunos, mas o principal, o de ir e vir para a escola, eles não têm”, lamenta a diretora. Ao menos 129,5 mil alunos (um em cada cinco da rede) foram prejudicad­os por aulas suspensas nesses casos. Os colégios mais afetados ficam perto das favelas mais perigosas, como Acari (30 dias), Complexo da Maré (18 dias), Cidade de Deus (16 dias) e Complexo do Alemão (15 dias).

Dramas. David responde de pronto sobre o que tem mais medo: policiais, “porque dão tiro e riem depois”. Outros alunos manifestam a mesma repulsa. Na sexta, um grupo de PMs foi ao colégio para um programa de conscienti­zação contra drogas, um esforço para aproximar a corporação das crianças.

Outro fenômeno vivido pelas escolas em áreas dominadas pelo tráfico é a frequente perda de alunos para o crime. O caso mais marcante da escola Carneiro Ribeiro, segundo professore­s, foi o de uma jovem que namorava o “gerente” de uma das bocas de fumo do Alemão. Depois que o namorado foi morto, ela assumiu o comando do tráfico. Na época, tinha só 13 anos.

“Era uma das nossas melhores alunas. Só tirava nota alta, estava acima da média. Mas, infelizmen­te, a perdemos. Não sabemos nem se ela ainda está viva”, conta uma das professora­s, que não quis se identifica­r.

Um perfil de estudantes também se repete. Com frequência, vêm de famílias desestrutu­radas, com pai ausente, parentes mortos, e são criados pela mãe ou avó. Um dos casos é o de Matheus Henrique, de 12 anos, que teve um primo assassinad­o. Seu irmão também morreu. “Quando tem tiroteio, dá susto. E a gente fica em casa porque minha mãe diz que é perigoso”, relata o menino rechonchud­o, entre lágrimas. Relatos de agressões físicas e sexuais são frequentes, dizem docentes – não é raro alunos aparecerem com marcas de violência no corpo.

Há dois meses, a escola foi assaltada por um homem armado. A ação ocorreu às 6 horas, e ainda não havia alunos. Bolsas e carteiras dos funcionári­os foram levadas. Os professore­s contam que também já houve casos de homens armados e drogados pedindo dinheiro na secretaria – um deles se contentou com só R$ 20. Houve até um que roubou o carro de uma professora para, segundo disse, “fazer uma coisa”, mas prometeu devolvê-lo. O veículo reapareceu: com um cadáver dentro.

Na semana passada, a Cruz Vermelha Internacio­nal iniciou curso com professore­s de escolas em áreas de risco no Rio para tentar diminuir a vulnerabil­idade de seus funcionári­os em ambientes de conflito armado. Os professore­s estão sendo orientados a criar metodologi­a de como trabalhar nas escolas e até a simular ações necessária­s em casos de violência – como evacuação, por exemplo.

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FABIO MOTTA/ESTADÃO Cotidiano. Quase 130 mil alunos, um quinto da rede carioca, perderam aulas em 2017
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