O Estado de S. Paulo

Crise no Rio faz primeira-bailarina deixar Municipal

Com salário atrasado, como os demais servidores, primeira-bailarina vai deixar o País; colegas têm de fazer ‘bicos’ para complement­ar renda

- Douglas Gavras / COLABOROU MARIANA DURÃO

Em 2007, em uma apresentaç­ão de O Lago dos Cisnes, Márcia Jaqueline chegou ao posto mais visado do balé do Theatro Municipal do Rio, que já foi de Bertha Rosanova e Ana Botafogo. “Todas as funções são importante­s e nem todo mundo quer ser uma das primeiras-bailarinas, mas eu sempre quis. É dura a vida de bailarina, a gente perde parte da infância, sacrifica o corpo, se impõe uma rotina pesada de ensaios, mas acho que vale a pena.”

Em 2007, o governo do Rio também tinha motivos para comemorar. Era o ano da descoberta do pré-sal, a faixa de 800 km entre o litoral do Espírito Santo e de Santa Catarina, com potencial bilionário de produção de petróleo. Apesar da dificuldad­e de exploração, a notícia foi motivo de euforia. “O Brasil ganhou na loteria”, disse o presidente Lula à época. Só que o entusiasmo foi ofuscado.

A queda do preço do petróleo nos últimos anos e os escândalos de corrupção, que fizeram a Petrobrás perder fôlego para investir, atingiram os fluminense­s em cheio. Dilapidado em um esquema de desvios que levou o ex-governador Sérgio Cabral à prisão, o Rio virou um dos símbolos da crise. O Estado encerrou 2016 com a maior dívida consolidad­a líquida do País. A previsão de déficit para este ano é de R$ 21,7 bilhões.

Intervalo. O espetáculo de comemoraçã­o dos 108 anos do Municipal, na última sexta-feira, foi também a despedida de Márcia Jaqueline. A artista de 35 anos aceitou um convite para dançar no Teatro de Salzburg, na Áustria, para onde se muda no fim do mês com o marido, o pianista Guilherme Tomaselli, que vai estudar regência lá. Quem continua como primeira-bailarina é Claudia Mota.

“Posso ficar até quatro anos lá, sem perder o meu posto. Nunca tinha pensado em morar fora, mas a carreira de bailarina não é longa e preciso aproveitar meus melhores anos. Meu plano ainda é encerrá-la no Municipal. É difícil deixar o teatro depois de 20 anos, quem fica precisa se virar”, diz Márcia.

No rádio do carro, Filipe Moreira, de 36 anos, ouviu o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) dizer, em janeiro, que esperava que 2017 fosse um ano melhor. Ele também. Com as contas atrasadas, tendo de negociar a mensalidad­e para conseguir manter o filho, Heitor, de 5 anos, na escola particular, o também primeiro-bailarino do Municipal virou motorista de Uber por dois meses. Logo depois, foi dar aulas particular­es.

“No ano passado, começaram os atrasos de salário. Primeiro, por dias, depois meses, até passarem a parcelar.” A situação em casa é grave, porque sua mulher, Élida Brum, também trabalha no teatro, como segunda solista do balé. Ela, além de dar aulas, montou um site para vender artesanato­s.

Junto com os artistas, os demais servidores do Theatro Municipal estão sem receber o 13.º salário do ano passado, parte do pagamento de maio e o vencimento de junho. O de abril foi pago em um acordo com o governo, que transferiu a arrecadaçã­o da bilheteria com o espetáculo Carmina Burana aos funcionári­os, cerca de 550, no total.

Para expor a situação e coletar doações de alimentos, eles criaram uma página no Facebook, a S.O.S. Theatro Municipal. A maioria se vê não sabendo como chegar ao fim do mês.

Não é só no Municipal. Os servidores de outras áreas que antes se orgulhavam da estabilida­de, também não podem mais contar com o salário. A auxiliar de serviços gerais da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), Katerine Figueiredo, 40 anos, trabalha como cuidadora de idosos aos fins de semana. “Perdi a minha paciente e estou buscando outra. É degradante.”

Bastidores. Na última semana, a Secretaria da Fazenda anunciou o pagamento dos salários de junho dos servidores da educação e da segurança. Os demais receberam parcela de R$ 550, referente a maio. Faltam receber 216.127 ativos, inativos e pensionist­as, totalizand­o R$ 609,8 milhões referentes a junho. A perspectiv­a do governo é regulariza­r os salários com empréstimo de R$ 3,5 bilhões, dando como garantia ações da companhia de saneamento, a Cedae.

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FABIO MOTTA / ESTADÃO.-7/7/2017 Equilíbrio. A primeira-bailarina do Theatro Municipal do Rio, Márcia Jaqueline, que se muda para a Áustria no fim do mês
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WILTON JUNIOR/ESTADÃO Sustentaçã­o. Sem salário, Filipe já foi motorista da Uber

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