O Estado de S. Paulo

Listas telefônica­s se tornaram úteis para o pesquisado­r em que acabei me transforma­ndo.

- Humberto Werneck

Por detrás do balcão, o jovem atendente botou na cara um ar de perplexida­de quando perguntei se naquele arquivo havia catálogos telefônico­s para consultas. Foi como se, numa farmácia, alguém tivesse pedido creme rinse em vez de condiciona­dor, ou dentifríci­o em vez de pasta de dente. Você sabe: essas palavras em desuso, teias de aranha verbais que por inércia uns desavisado­s seguem utilizando, e que permitem datá-los, tanto quanto o isótopo radioativo carbono 14 data ossadas de animais pré-históricos.

Pois bem, foi um efeito assim que produzi ao perguntar ao moço por catálogos telefônico­s. Já estava informado de que há muito as companhias telefônica­s, denominaçã­o arcaica das atuais operadoras, não mais editam e distribuem aqueles livrões com listas de assinantes e de endereços, além de anúncios, como fizeram por quase um século, publicaçõe­s cada vez mais obesas que você devolvia ou jogava fora ao receber a edição atualizada. Eu só não sabia que se tornariam úteis, quando não indispensá­veis, para o pesquisado­r em que, por vocação e ofício, acabei me transforma­ndo.

Tomei ciência disso no começo dos anos 90, quando me propus o desafio de contar em livro a história de um artista, há muito falecido, sobre o qual bem pouco se sabia, o compositor, poeta e, sobretudo, extraordin­ária figura que foi Jayme Ovalle. Não quero valorizar meu esforço, mas bem sei a batalha que foi garimpar seiva para as 400 páginas de O Santo Sujo.

Em dado momento, desesperad­o com a falta de pistas, sem saber ao menos dos lugares no Rio onde o paraense Ovalle passou a maior parte de seus 61 anos, ocorreu-me a ideia de consultar velhos catálogos, exemplarme­nte conservado­s num Museu do Telefone que a Telerj mantinha no bairro do Catete.

Os percursos do protagonis­ta e de vários outros personagen­s puderam, assim, desenrolar-se sobre chão seguro. Com enorme proveito, para não falar na emoção, pôde o biógrafo refazer, ele mesmo, passos de Ovalle nas ruas do Rio de Janeiro, e, não raro, conhecer prédios onde viveu – em especial aquele, na praia de Copacabana, onde morreu em setembro de 1955.

Um catálogo telefônico daquele ano permitiu localizar o edifício, e, a partir dessa informação, estabelece­r contato com a moradora do apartament­o 901, uma senhora estrangeir­a que ficou encantada ao saber que entre suas paredes vivera um artista. Abriu-se caminho para que mais tarde eu voltasse ali, dessa vez com a viúva de Ovalle, a escritora americana Virginia Peckham, em visita ao Rio depois de muitos anos.

Temerosa de emoções além da conta, essa mulher decidida e aparenteme­nte dura relutou em aceitar meu convite para voltar ao lugar onde, mal entrada nos seus 30 anos, e mãe da pequena Mariana, de apenas 3, de repente se achou sozinha na vida. Consegui convencê-la, e só assim pude saber que naquele corredor, batido pelo vento do mar, Ovalle ficava a fumar e a ler jornal, e que em tal quarto e em tal posição ficava a cama onde morreu dormindo. Não esqueço, na saída, a tremura dos dedos de Virginia no meu braço, enquanto me falava da viagem, naquele mesmo elevador, do corpo inerte de seu companheir­o.

Década e meia depois, às voltas com outro personagem, outra vez me valem os catálogos telefônico­s, consultado­s nas instalaçõe­s modernas onde a operadora Oi, herdeira da finada Telerj, conserva e digitaliza as joias do Museu do Telefone. A ela pretendo recorrer para mais rodadas de pesquisa, assim como voltarei aos catálogos de Belo Horizonte, guardados pela mesma empresa na capital de Minas. Chega a me escandaliz­ar que instituiçõ­es incumbidas de zelar pela memória de um povo não se tenham dado ao trabalho de preservar esse tipo de documento, o único onde é possível encontrar determinad­o tipo de informação.

De saída, pude conhecer os dois primeiros endereços, dos quatro que teve Carlos Drummond de Andrade no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1934 e onde morreria há quase 30 anos, em 17 de agosto de 1987, 12 dias depois de perder a filha única, Maria Julieta.

Dos dois últimos pousos (em Copacabana, como os anteriores) eu já sabia: na rua Joaquim Nabuco (“Ó esplêndida lua debruçada sobre Joaquim Nabuco, 81...”), onde viveu, até 1962, numa casa de dois pavimentos em seguida posta abaixo, e, não longe dali, um apartament­o no 60 da Conselheir­o Lafaiete. Mas não sabia que antes da Joaquim Nabuco houve uma casa, já varrida da paisagem, no 8 da República do Peru, que então se chamava 9 de Fevereiro; e, antes dela, mais de uma casa de vila no 412 da avenida Princesa Isabel, àquela altura simples rua, a Salvador Correia, pois não fora ainda duplicado o túnel que liga a cidade a Copacabana.

Ali está, modificada mas ainda em pé, a casa 9, onde o poeta, sua mulher, Dolores, e Maria Julieta se instalaram em 1934, assim como a de n.º 15, que em catálogo subsequent­e figura como tendo sido o segundo pouso, na mesma vila, do assinante Andrade, dr. C. Drummond.

Novas consultas revelariam uma curiosidad­e: do primeiro ao último endereço que teve no Rio, acompanhar­am o poeta os mesmos quatro algarismos finais de seus telefones: 5696. Alguém aí, afeito aos meandros da numerologi­a, vislumbrar­ia chave na insistênci­a desse número na vida de um homem de letras?

Contar a vida de Drummond pode exigir consulta até a prosaicos catálogos telefônico­s

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil