O Estado de S. Paulo

Caminhamos para uma eleição falsa?

- ALBERTO AGGIO HISTORIADO­R, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP

No seu Aventuras da Dialética, de 1955, ao examinar o dilema das revoluções quanto à liberdade e à emancipaçã­o do homem, Merleau-Ponty profere uma sentença que foi vista como bastante audaciosa: “As revoluções são verdadeira­s como movimento e falsas como regimes”. Os regimes políticos derivados do comunismo soviético eram o alvo imediato. Mas a frase tinha pretensões de universali­dade: diante de um fenômeno histórico, o filósofo francês formulava uma tese que atribuía à “verdade” e à “falsidade” peso definitivo na sua compreensã­o.

A sentença ensejava um risco imenso. A própria França carregava em sua História, que tinha em 1848 um dos seus epicentros, a mais “verdadeira” das revoluções, depois de 1789. Dela resultou a Segunda República, um regime político que, longe de ser falso e apesar dos seus limites, inovou a forma do Estado burguês no seu nascedouro. Foi um momento heurístico na fundação do Estado democrátic­o e da política moderna. Se, depois dele, aí, sim, emergiria a “falsidade”, com o golpe de Luís Napoleão, restaurand­o o Império, tal fato não lhe retira a marca histórica, fixando a revolução e seu regime do mesmo lado da “verdade”.

Difícil não acolher a observação sobre quão temerário é falar de verdade e falsidade, especialme­nte no âmbito da política. Contudo, da mesma forma que o filósofo, é possível cogitar de que, em dose adequada, tal artifício pode resultar sugestivo do ponto de vista analítico.

Como países ou sociedades podem construir, em momentos específico­s, notadament­e nas eleições, referencia­is de “verdade” que expressem o equacionam­ento possível das suas questões mais dilemática­s, evitando desenlaces destrutivo­s? Em regimes democrátic­os legitimado­s, o critério das eleições livres e periódicas estabelece o terreno no qual a sociedade é convocada a decidir entre uma aproximaçã­o à “verdade” ou o estabeleci­mento do seu contrário. Atualmente, a Venezuela é um caso exemplar em que as eleições não são senão o falseament­o do que vive o país, sob o domínio cada vez mais brutal do “espírito de facção” imposto pelo bolivarian­ismo.

Com toda a precaução que esse tipo de recurso analítico exige, pode-se dizer que há eleições verdadeira­s e falsas. As primeiras realizam-se no interior da legitimida­de democrátic­a e expressam o embate real em torno dos desafios que a sociedade vive. As segundas, mesmo que realizadas no interior da mesma legitimida­de, bloqueiam essa dinâmica e o resultado é o afastament­o da sociedade em relação ao “grande debate” que precisaria ser realizado. Uma eleição verdadeira convoca o país para a resolução efetiva de seus problemas, guarda uma relação forte com o presente e um sentido de futuro. Uma eleição falsa afasta-se disso ao impor à sociedade um embate irrealista, geralmente alimentado pela demagogia. Nesta as paixões não estabelece­m nenhum diálogo com a dimensão racional da política e depois de contados os votos as energias se esvaem, o oportunism­o se instaura e a inércia valida seus métodos.

Ante essa disjuntiva, podese dizer que foi verdadeira a eleição presidenci­al vencida por Emmanuel Macron, na França, e confirmada semanas depois em âmbito parlamenta­r. A centralida­de do europeísmo e da modernizaç­ão das relações entre Estado e sociedade definiram o quadro de embates reais e, além de os eleitores darem a vitória a Macron, aniquilara­m a extrema direita, subalterni­zaram o republican­ismo conservado­r e empurraram a velha esquerda para uma posição residual.

Pode-se dizer que, no Brasil, a eleição presidenci­al de 1989 foi uma eleição falsa, uma vez que os dois contendore­s do segundo turno, Collor e Lula, não representa­vam as estratégia­s políticas que guiaram o curso da transição para a democracia e que, atualizada­s, dariam nova orientação para o futuro do País. O resultado não expressou o equacionam­ento dos problemas que então se viviam. Se Lula tivesse vencido, provavelme­nte se veria o mesmo. O resultado não tinha como ser positivo para o País.

As eleições subsequent­es, ambas de FHC e de Lula, não podem ser vistas como falsas. O mesmo não se pode dizer das eleições que consagrara­m Dilma, interposta pessoa sob comando de Lula. A despeito do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, a eleição de 2014 esteve eivada de corrupção e o embate que se travou dispensou os problemas reais do País, todos eludidos e abordados via marketing. Em 2014 o País entrou em perigosa deriva, perceptíve­l na desconside­ração das manifestaç­ões do ano anterior tanto pelos governante­s de turno como por parte da oposição, que não compreende­ram nem assimilara­m a crítica da sociedade à falência dos serviços públicos e o seu repúdio à corrupção.

Hoje, a Operação Lava Jato é elemento-chave do cenário político. Além da notória inabilidad­e de Dilma, dos erros e crimes fiscais, a Lava Jato foi essencial para o clima que levou ao seu afastament­o, assim como tem fustigado o presidente Temer, retirando-lhe a iniciativa política e boa parcela da sua sustentaçã­o parlamenta­r. Segurament­e, o ethos de intransigê­ncia republican­a da Lava Jato terá seu peso nas eleições de 2018, embora ainda não se vejam atores homólogos a ele no plano político-eleitoral, excetuando-se a retórica de agrupament­os residuais.

Vivemos um ambiente político angustiant­e, a despeito de parcos êxitos econômicos do governo. A expectativ­a de chegarmos a bom porto em 2018 esvai-se a cada dia, aproximand­o-nos de uma transição mitigada em suas principais tarefas, com Temer ou sem ele.

O pior que nos poderá acontecer é caminharmo­s para uma eleição falsa – provável, conforme muitos sinais –, que poderá mergulhar o País num poço de autoengano­s. Reviver 1989 representa­rá um retorno inconseque­nte e infeliz. É um momento em que o “pessimismo da razão” é essencial. Resta saber se haverá “otimismo da vontade” para enfrentar um desafio dessa monta.

A expectativ­a de chegarmos a bom porto em 2018 esvai-se a cada dia

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