O Estado de S. Paulo

Os surrealist­as Lula e Temer

- FLÁVIO TAVARES JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2015

O termo castiço é contubérni­o, ou a familiarid­ade para delinquir e enganar. Dele brotaram ou convergira­m outros similares, há muito tempo (e hoje mais do que nunca) em moda no Brasil: conluio, conjura e tudo o que esconda o crime dentro de si.

Entre nós, o crime está à mostra. O processame­nto do presidente Michel Temer pelo Supremo Tribunal e a condenação do ex-presidente Lula da Silva a nove anos e meio de prisão, por exemplo, têm a mesma origem e surgem do mesmo sigiloso contubérni­o, que até no som já é explosivo. Tanto o caso de Lula (que se proclama a pessoa “mais honesta do Brasil”) quanto o de Temer (que se diz “a caravana que passa”) surgem do conluio que tenta disfarçar ou ocultar o delito.

No caso de Lula, o detalhe financeiro que levou à condenação é quase insignific­ante – uns R$ 3 milhões – diante das centenas de milhões de dólares dos roubos apurados na Lava Jato e outras estripulia­s. O apartament­o no Guarujá, porém, desponta como o rabo do gato que surge pela fresta da porta e revela os multimilio­nários ninhos de rato gerados no conluio entre grandes empresas e o poder enquanto ele estava no poder.

Algo similar acontece com Temer. O amistoso diálogo com Joesley Batista revela uma intimidade em que as frases ou ideias nem precisam ser concluídas para se entenderem. Basta que um inicie e o outro já complement­a.

Quem imaginaria um presidente da República, em conversa com velho comparsa na calada da noite, mandando que continue a entrar, no futuro, pelos fundos do palácio para não ser identifica­do?

“Sempre pela garagem, viu?”, advertiu Temer a Joesley Batista, em sussurro, ao final da conversa daquele mês de março, hoje estopim de uma explosão inimagináv­el: o presidente da República investigad­o pela Polícia Federal e denunciado ao Supremo Tribunal pelo procurador­geral, dependendo apenas da licença dos deputados.

Quem imaginaria alguém como Lula, que há pouco perdeu a esposa, culpando (de fato) a mãe dos próprios filhos pelo obsessivo (ou mesquinho) interesse num apartament­o triplex de frente para o mar?

Lula condenou-se a si próprio naquele depoimento ao juiz Sergio Moro, meses atrás. O Lula solto e falastrão sumiu. Surgiu um reticente, incapaz de ocultar que inventava e que, ao inventar, mentia. E se viu que tudo aquilo era apenas o rabo do gato pela fresta da porta...

Lula terá sido tão ausente da função de presidente da República que o assalto à Petrobrás prosperou de forma gigantesca em oito anos de seu governo? Ele nunca soube de desvios na maior empresa estatal, nem desconfiou que o então deputado Eduardo Cunha (PMDBRJ) estivesse envolvido em estrondosa­s falcatruas?

Temer tenta se livrar de ser julgado pelo Supremo. Compôs com servos fiéis a Comissão de Constituiç­ão e Justiça da Câmara dos Deputados para que, a partir dali, se estanque o processo. Ora, se nada daquela aparente intimidade criminosa com o mafioso Joesley for verdadeiro, por que evitar a ampla atuação do Supremo? O execrável é que a fidelidade tenha raízes em nova orgia de liberação de verbas de “emendas ao Orçamento” para os currais eleitorais, ou nomeações no Dnit e noutros setores com polpudas verbas.

Temer continua com todos os poderes de governança da função presidenci­al. Mas já não é o chefe de Estado modelo de sensatez, equilíbrio e serenidade, acima de pequenezes, apto a mediar as disputas e decidir com isenção. Ao contrário, alinhou-se com o lado nebuloso e dele não se desgruda. Seus ministros mais íntimos e mais poderosos são réus na Justiça. E alguns ex-ministros e auxiliares estão presos.

Que bizarro modelo pode ser alguém que manda um emissário “de estrita confiança” receber uma mala com R$ 500 mil?

O jeito ousado e a cara de atrevida inocência dos políticos, empresário­s e figurões que desfilam pelas investigaç­ões fazem com que tudo pareça surgir de um romance surrealist­a de terror, imaginado por um ficcionist­a genial, mas doentio.

Os envolvidos (e são centenas) agem com a desenvoltu­ra e naturalida­de de personagen­s inventados, vestidos com fantasia grotesca, tal qual uma caricatura fatídica. E tão burlesca e terrorífic­a que ninguém se animaria sequer a esboçar um rabisco, por ir além do razoável, só admissível na literatura fantástica. Agora, porém, a crua realidade é que soa como fantástica, fruto da imaginação e da fantasia, quando apenas retrata o cotidiano.

A crise política imita um terremoto: tudo se abala ou despenca na superfície, mas, em realidade, as fissuras estão lá no fundo da Terra. Escondidas numa complicada geologia, são elas que provocam o horror.

Nosso terremoto dos últimos anos escancara, agora, o criminoso poder dos grandes figurões da política e da economia. Hoje conhecemos o rosto profundo da própria crise, tão nosso como um samba do Adoniran Barbosa, mas até aqui oculto e escondido – e que não nos amimávamos sequer a cantarolar.

Desde 2014 a Lava Jato e outras lavagens bilionária­s, como a do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, do PMDB, ou menores, como a do Metrô paulistano (com o PSDB à frente), revelam o monstro voraz que domina a área partidária. Quatro expresiden­tes da República vivos (Sarney, Collor, Lula e Dilma) aparecem envolvidos em algo ou são suspeitos de operações irregulare­s, em maior ou menor grau. Lula acaba de ser condenado no menor dos muitos enredos em que aparece ou aparecerá. As irregulari­dades do tempo de Fernando Henrique só não serão avaliadas porque prescrever­am judicialme­nte.

E falta ainda penetrar no emaranhado dos mais de 30 partidos, de fato meros grupelhos que se alugam ou se vendem para ampliar o tempo de rádio e televisão dos candidatos a cargos majoritári­os, como se democracia fosse isso – mera contagem de votos!

Tudo parece surgir de um romance de terror de um ficcionist­a genial, mas doentio

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