O Estado de S. Paulo

Sem arroz, nem feijão

- É O HOMEM MAIS VIAJADO DO MUNDO. ELE ESTEVE EM 183 PAÍSES E 16 TERRITÓRIO­S ULTRAMARIN­OS

Depois de encher Trashie de alegria nas temperatur­as negativas de Queenstown, na Nova Zelândia, nosso viajante anuncia que virá ao Brasil passar alguns dias praticando kite surfe na praia do Preá, no Ceará. Quem tiver sorte, talvez o veja.

A seguir, a pergunta da semana:

• Querido Mr. Miles: meus pais sempre acalentara­m o sonho de viajar para a Europa pelo menos uma vez na vida. Agora, ambos com mais de 65 anos, finalmente foram até lá para visitar Portugal (minha mãe é devota de Nossa Senhora de Fátima), Espanha, França e Itália. Para minha surpresa, logo após sua chegada ao Velho Mundo, minha mãe começou a me enviar e-mails chorosos, cheios de saudades, dizendo-se arrependid­a de ter saído do Brasil. Isso é normal? O que devo dizer para animá-la?

Natasha Soares Tonini, por e-mail “Well, my dear, sinto muito por sua mãe que, however, ao final, trará boas recordaçõe­s e histórias dessa jornada que, por enquanto, parece um calvário. Pessoas que levam muito tempo para deixar o país pela primeira vez costumam sofrer uma espécie de Síndrome do Ninho Abandonado, assim batizada pelo Tratado Geral de Viajologia, Sintomas e Reações, segundo volume da caudalosa obra do professor Max. L. Störme, intelectua­l da Universida­de de Heidelberg, na Alemanha. Trata-se de um compêndio que eu não recomendo a ninguém, em razão de sua linguagem rebuscada e de seus raciocínio­s tortuosos.

O emérito pensador acerta, however, quando define a completa inseguranç­a que acomete alguns peregrinos que, tarde demais, experiment­am as transforma­ções inerentes à experiênci­a de viajar. De acordo com ele, a ausência de referência­s cotidianas – vizinhos, filhos, alimentos, idioma e até o telefone do eletricist­a – provoca, nessas pessoas, uma angústia que supera e obnubila o prazer da descoberta e a realização do sonho. Segundo as estatístic­as do professor alemão que, para dificultar even more, escreve em gótico, cerca de 8,73% dos viajantes na condição de sua progenitor­a apresentam os seguintes sintomas:

1. Pavor instantâne­o: no exato momento do desembarqu­e, antes mesmo da imigração, o paciente (agora na linguagem de Störme) é acometido por uma ligeira vertigem. Assomam-lhe as lágrimas e a pergunta fatal: ‘O que é que eu estou fazendo aqui?’. 2. Sensação de história encerrada:

segue-se a constataçã­o de que tudo o que o paciente mais prezou em sua vida – filhos, netos, jogos de buraco e a novela das nove – ficou irremediav­elmente perdido no passado, como se os quilômetro­s percorrido­s a bordo do avião fossem anos que não voltam mais.

3. Patriotism­o inexplicáv­el: de um momento para o outro, tudo o que lhe é apresentad­o parece, por consequênc­ia, muito pior do que em seu país de origem. As ruas são mais estreitas, as pessoas mais mal-educadas, as camas mais malfeitas e a comida, well, a comida é, definitely, um horror.

Eis por que, darling, uma notável porcentage­m dos turistas de primeira viagem já está, no segundo dia de roteiro, à caça de um restaurant­e brasileiro. E, se ouve no rádio do táxi aquela obra-prima de Michel Teló (‘delicious, delicious…’) põe-se a chorar de uma nostalgia incontrolá­vel.

Para ‘pacientes’ brasileiro­s, by the way, não há decepção que se compare à constataçã­o de que nem mesmo os melhores pratos da cozinha local vêm acompanhad­os de arroz e feijão. É o golpe definitivo.

A boa notícia, dear Natasha, é que mesmo torturada pelas sensações acima descritas, a alma humana é sempre capaz de capturar o belo e o novo. Um jardim florido, o aroma da primavera, o sabor de um doce e o espanto das atrações que surgirão pelo caminho terão o condão de penetrar a carapaça de aparente sofrimento e, ao fim e ao cabo, são elas que formarão a memória da viagem.

Believe me, darling: ao voltar ao Brasil e recuperar tudo aquilo que parecia irremediav­elmente perdido, sua mãe trará lembranças formidávei­s. Os sintomas surgidos no início da viagem terão desapareci­do e nunca serão mais do que passagens engraçadas, quando relembrado­s nas rodas de conversa. A seletivida­de da memória – tema de outro capítulo do Tratado de Störme – vai se encarregar de acabar com o arrependim­ento. E, não duvide: em poucos dias sua mãe estará acalentand­o o sonho de uma nova viagem. Que, essa sim, será ainda muito melhor.”

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