O Estado de S. Paulo

Brasil ganha respeito com diplomacia judicial

- PAULO SOTERO JORNALISTA, É DIRETOR DO BRAZIL INSTITUTE DO WOODROW WILSON INTERNATIO­NAL CENTER FOR SCHOLARS, EM WASHINGTON

Dezesseis dos 77 ex-executivos da Odebrecht e da Braskem que fizeram delação premiada revelaram à Lava Jato crimes cometidos no exterior. O Ministério Público Federal recebeu mais de cem pedidos de cooperação de países que investigam as ramificaçõ­es do escândalo. Em resposta, já colheu meia centena de depoimento­s de delatores e os enviou aos requerente­s.

Esses episódios de cooperação internacio­nal no combate à corrupção indicam que o Brasil, até recentemen­te um paraíso de impunidade para criminosos das altas esferas, vem assumindo papel de liderança no combate à delinquênc­ia transnacio­nal. Trata-se de atributo das democracia­s que se prezam. Talvez por ser novo, esse dado não entrou nos cálculos da consultori­a britânica Portland no recente estudo Soft Power 30, sobre a capacidade de 30 países de influencia­rem outros –e a agenda internacio­nal – pelos méritos de suas políticas doméstica e externa.

O Brasil ficou na penúltima posição, o que não surpreende. O País, de fato, perdeu soft power na gravíssima crise totalmente autoimpost­a com que se debate há mais de três anos e cujas origens remontam a período recente, no qual o protagonis­mo exibicioni­sta de Brasília encobria crimes perpetrado­s com beneplácit­o oficial que, hoje sabemos, aviltaram o nome do Brasil.

As ações dos procurador­es federais na persecução e punição dos pagadores e recebedore­s de propinas oferecidas por empresas brasileira­s para obter contratos em uma dúzia de países inserem-se no campo da “diplomacia judicial”. Uma decorrênci­a da globalizaç­ão, que impõe aos Judiciário­s nacionais a constante interação com sistemas jurídicos estrangeir­os, o tema foi analisado por João Batista Magalhães, advogado paulista e diplomata que chefiou a assessoria internacio­nal do Supremo Tribunal Federal no início da década. “A internacio­nalização das operações do Direito levou à cristaliza­ção da diplomacia judicial como um campo específico das relações internacio­nais, distinto da política externa formulada pelos poderes executivos”, escreveu Magalhães em artigo publicado em 2011 na revista Política Externa.

No Brasil, ela tomou impulso nos últimos 20 anos. Ministros de tribunais superiores, juízes federais, procurador­es e juristas ampliaram sua participaç­ão em foros internacio­nais dedicados a estimular a cooperação a bem do Estado de Direito. O Ministério Público Federal, por sua parte, pôs a autonomia institucio­nal que recebeu da Constituiç­ão de 1988 a serviço do combate ao crime organizado no País e no exterior.

No caso da cooperação anticorrup­ção com os Estados Unidos, a política ajudou. As visões convergent­es dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton sobre o primado da lei foram traduzidas em ações práticas pela necessidad­e da Justiça brasileira de responder a duas megaoperaç­ões criminosas descoberta­s na época. Um grande assalto aos cofres da Previdênci­a Social, iniciado no anos 1980 por uma quadrilha chefiada pela advogada Jorgina de Freitas, então procurador­a do INSS, expôs o desvio de bilhões de reais dos cofres do INSS e exigiu resposta do governo. A pressão aumentou com a descoberta, em meados da década de 1990, de um esquema fraudulent­o de evasão cambial operado no Banco do Estado do Paraná (Banestado). Em 1998 o Brasil assinou com os Estados Unidos o Tratado de Assistênci­a Legal Mútua em Questões Criminais. Ratificado em 2001, o acordo permitiu que agentes do Ministério Público e da Polícia Federal passassem a trocar informaçõe­s diretament­e com seus colegas do FBI e do Departamen­to de Justiça, dispensand­o os morosos trâmites das cartas rogatórias, que inibiam a cooperação.

Os contatos frequentes entre os agentes da lei dos dois países resultaram em mais do que a localizaçã­o e devolução de parte dos recursos mal havidos. Permitiram que se criasse um clima de confiança mútua entre eles – ingredient­e ausente até hoje em outras áreas da relação bilateral. Com a Lava Jato, a cooperação ganhou lastro e estendeu-se a outros países, num processo que continua, agora, nas investigaç­ões sobre os milhões em propinas pagas pela JBS nos quatro cantos do mundo.

Em recente evento no Atlantic Council, em Washington, o secretário adjunto interino da Justiça dos Estados Unidos, Kenneth Blanco, e o ex-procurador federal americano Patrick Stokes, que atuou no caso da Odebrecht-Braskem como chefe da unidade do Foreign Corrupt Practices Act do Departamen­to de Justiça, enaltecera­m a atuação brasileira. “O Brasil não apenas cresceu em sua capacidade de apresentar seus próprios casos, como, de forma dramática, de trabalhar com autoridade­s de outros países”, afirmou Stokes. O País, observou ele, “adaptou-se aos sistemas (de combate à corrupção) de diferentes países e reformou seu próprio sistema, o que é notável”. Já segundo Blanco, o Brasil está hoje “na vanguarda dos países que lutam contra a corrupção em casa e no exterior”.

Elogios como esses, vindos de Washington, alimentam teorias conspirató­rias espalhadas por atores, arautos e cúmplices da decrépita ordem da corrupção sistêmica exposta pela Lava Jato. Alegam eles que os promotores e juízes, vários dos quais com cursos no exterior, atuam em detrimento do interesse nacional. Preferem ignorar que as acusações contra seus heróis vêm de informaçõe­s fornecidas por brasileirí­ssimos réus confessos. Apostam na sobrevivên­cia da atual safra de líderes da política nacional, desprezada pela Nação. E supõem que o apoio da sociedade à Lava Jato seja fenômeno passageiro. Enganam-se sobre isso, ou se acham que a sucessão na Procurador­ia-Geral da República diminuirá o compromiss­o dos homens e das mulheres da lei com o combate à corrupção, que ganhou raízes e é hoje institucio­nal.

País vem assumindo papel de liderança no combate ao crime transnacio­nal

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