O Estado de S. Paulo

Vendo o futuro pelo retrovisor

- •✱ FLÁVIO

Ocaminho está sempre à nossa frente. Se nos parecer que está atrás, basta nos virarmos e já tudo muda. Assim não ficamos na estrada, inertes e inúteis. A vida é um ir em frente constante e nisso estão de acordo filósofos, religiosos, cientistas, rockeiros e chefs. Entre nós, porém, há quem veja o futuro pelo espelho retrovisor, com o amanhã lá atrás, naquilo que abandonamo­s por decrépito e gasto, ruim e maldoso.

Os escândalos (antes ocultos) que explodem pelo País mostram a caminhada rumo à maturidade. Foi-se o medo a que a omissão nos condenara e que nos fazia parte do crime, até sem o saber. E apareceu o velho conluio entre poder público e setor privado. A cada dia, novo horror e a mesma engrenagem. Só varia a soma.

Surge então a bofetada, vinda daquele pessoal do espelho retrovisor. Sem entenderem o presente, nossas chamadas elites continuam ausentes do futuro. Desejarão restaurar o passado de alienação e torpor em que nada vemos? Quando invocam grandes realizaçõe­s ou obras, tudo brilha como os anéis de vidro e falso ouro com que, na infância, brincávamo­s de reis e rainhas – tudo mentira e ilusão. Fatos recentes mostram quão ativa está a mentalidad­e do espelho retrovisor.

A balbúrdia na Câmara dos Deputados em torno da rejeição da denúncia para investigar o presidente Temer por corrupção fez esquecer (ou tapou) o que o ministro Gilmar Mendes disse à imprensa ao recomeçare­m os trabalhos do Supremo Tribunal. Quando todos (à exceção dos delinquent­es) aplaudem a determinaç­ão com que o procurador-geral Rodrigo Janot e o Ministério Público enfrentam o crime organizado, eis que Gilmar Mendes pede “a volta de um mínimo de decência, sobriedade e normalidad­e” à Procurador­ia e aos procurador­es. De fato, aludia à futura procurador­a-geral, Raquel Dodge.

O que é isso senão mudar a óptica com que se vê o crime? Será decência voltar à leniência e permissivi­dade de anos atrás, em que se “engavetava” ou somente se via a letra da lei, sem penetrar no âmago do horror? É isso normalidad­e? Ou isso gerou o assalto à Petrobrás e tudo o que fez da gestão pública um antro de enriquecim­ento pessoal? E que criou no Brasil um estranho capitalism­o privado mantido por dádivas do Estado?

Disse o ministro que a Corte “ficou a reboque das loucuras do procurador Janot”, com o que contradiss­e o próprio juízo comum (fonte do Direito) de que o poder judicial e o Estado existem para extirpar o crime, não para permitir que se estenda ou se multipliqu­e. Que “loucuras” praticaram Janot e os procurador­es da Lava Jato ao desnudarem a promíscua orgia de políticos, altos funcionári­os, empresário­s, doleiros e “operadores” dos partidos?

Ou queríamos que Janot “afrouxasse” e que a investigaç­ão se tornasse cartorial e burocrátic­a, com carimbos e teóricos pareceres, com circunlóqu­ios como o nariz do Pinóquio? A Procurador­ia podia ter sido mais dura com os irmãos da Friboi (que deram a pista e hoje soltos), mas por estratégia os deixou para mais tarde.

A crítica (ou ataque) de Gilmar a Janot atinge também o próprio STF, que ele disse ser “muito concessivo” e que, “a reboque do procurador, contribuiu para esta bagunça completa”. Desejaríam­os o quê? A bagunça de antes, quando nada sabíamos (ainda que desconfiás­semos) e os hoje sentenciad­os e presos (ou com tornozelei­ras) posavam de nobres grão-duques do nosso reino republican­o?

Tempo de ventania, agosto mostra o encantamen­to do espelho retrovisor.

A Câmara dos Deputados negou licença para o Supremo Tribunal investigar e julgar o presidente da República por crime de corrupção, como pedia o procurador-geral. Por si só, isso não constituir­ia deslize nem causaria espanto, não fosse o caminho percorrido.

Primeiro, o PMDB mudou seus membros na Comissão de Constituiç­ão de Justiça para que rejeitasse­m o parecer do relator, que opinara por aceitar a denúncia. Começava aí a transforma­ção do poder em balcão de negócios. Logo, o Palácio do Planalto armou uma rede de convencime­ntos ou velados subornos, liberando as “emendas ao Orçamento” com que os deputados atendem a seus currais eleitorais, em especial no Norte e Nordeste. Logo, a persuasão direta: dois ministros da intimidade presidenci­al, Eliseu Padilha e Moreira Franco (ambos réus na Lava Jato) amarraram o apoio necessário.

Alguns partidos, como PMDB, PP, DEM, PRB e outros da base alugada, “fecharam questão” rejeitando a investigaç­ão. Não se tratava sequer de julgar o presidente, mas de lhe dar a oportunida­de de demonstrar inocência. Assim, em ação planejada, junto com o Planalto acabaram obstruindo a Justiça. E a Câmara que votou a lei da transparên­cia – para que de tudo se tome conhecimen­to – agora evitou que se esclareçam atos pouco transparen­tes da mais alta autoridade da República.

Após o resultado, Temer fez um pronunciam­ento pela TV sem mencionar a causa de tudo, a denúncia do procurador­geral. Limitou-se a elogiar seu próprio governo e a lugares-comuns, dizendo que o ato da Câmara (que não especifico­u) era “uma conquista do Estado de Direito que mostra a força das instituiçõ­es”. Não tocou na força da ética, como se não fosse o núcleo de tudo.

Também na oposição houve incongruên­cia. A licença para investigar o presidente é questão ético-moral inerente à respeitabi­lidade do cargo, mas o PT banalizou-a. Seus deputados votaram “contra a reforma trabalhist­a” ou “previdenci­ária”, contra isso e aquilo, temas ausentes do jogo. Votavam pelo “fora Temer”, não pelo crime a investigar. Seria pelo telhado de vidro na própria casa?

Só uns poucos – do PSOL e da Rede aos 21 dissidente­s da bancada do PSDB – tocaram na tecla certa e, naquele 263 a 227, votaram vendo o futuro pela frente, não pelo retrovisor.

Será decência voltar à leniência de anos atrás, em que se via só a letra da lei?

JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA, EM 2000 E 2005

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