O Estado de S. Paulo

De olhos bem abertos

- ✱ ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDA­DE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

Convivem hoje no País visões cada vez mais divergente­s das perspectiv­as da economia brasileira. Boa parte dessa divergênci­a decorre das dificuldad­es de levar em conta a extraordin­ária complexida­de da interação que poderá se estabelece­r entre a economia e a política, ao longo dos próximos meses.

Para entender com mais clareza a natureza dessas dificuldad­es, pensemos em como o cérebro sobrepõe imagens formadas em cada um dos nossos olhos, combinando perfeitame­nte os dois conjuntos de informação. Imaginemos o que ocorreria se tivéssemos olhos especializ­ados, bem diferentes dos que de fato temos. Um olho treinado para análise econômica, outro para análise política. Ao sobrepor as imagens formadas por cada um desses dois olhos, as cores mais carregadas de um lado poderiam dominar as cores mais leves do outro.

Isso ajuda a perceber o que parece estar ocorrendo. Na medida em que diferentes analistas vêm conjugando consideraç­ões de ordem política e de ordem econômica de formas muito distintas, as visões de futuro vêm-se tornando sensivelme­nte divergente­s.

O que, tipicament­e, vem enxergando o olho de analista econômico? Boas razões para avaliação favorável dos resultados obtidos pelo governo Temer. Tendo constatado que o descalabro fiscal deixado por Dilma Rousseff exigia um ajuste fiscal de pelo menos 5% do PIB, o governo conseguiu convencer o País de que tal ajuste não precisaria ser feito de imediato. Poderia ser feito aos poucos, ao longo de vários anos, desde que não houvesse dúvida sobre a determinaç­ão de levá-lo adiante.

Para tornar crível a proposta de ajuste fiscal gradual, o governo seguiu de perto o plano de jogo delineado em meados de 2016. Montou uma equipe econômica de excelente nível, restaurou a credibilid­ade do Banco Central, trouxe a inflação à meta e assegurou queda substancia­l da taxa de juros, abrindo espaço para recuperaçã­o da economia.

No front especifica­mente fiscal, o governo conseguiu aprovar a emenda constituci­onal do teto de gastos. E submeteu ao Congresso um projeto ambicioso de reforma da Previdênci­a Social. Ajudaram a dar força ao círculo virtuoso que se formou, contas externas cada vez mais sólidas e um quadro favorável na economia mundial, com alta liquidez internacio­nal.

Mas o plano de jogo ainda incluía um último ponto crucial: assegurar que, na esteira do relativo sucesso da política econômica, fosse possível eleger, em 2018, um candidato comprometi­do com a manutenção do ajuste fiscal no próximo mandato presidenci­al.

Como tudo isso tem sido visto pelo olho do analista político? O vazamento da delação dos irmãos Batista tornou o quadro político muito mais adverso. Com o presidente acuado e fragilizad­o, já não há muito espaço para ilusões sobre parte importante do plano de jogo em que o País vinha apostando.

É bem verdade que Temer conseguiu com que a Câmara bloqueasse a primeira denúncia da Procurador­ia Geral da República. E é bem possível que consiga bloquear novas denúncias. Mas, mesmo assim, o presidente não voltará a ter o capital político com que contava até 17 de maio. A crise deixou danos permanente­s. A fragilizaç­ão do presidente veio para ficar.

Em que medida isso compromete o plano de jogo no qual se vinha apostando? A aprovação de uma reforma da Previdênci­a ambiciosa ficou inviável. O choque de incerteza política atrasou a recuperaçã­o do investimen­to e do nível de atividade. A perda de ascendênci­a do presidente sobre o Congresso elevou o risco de rápida e substancia­l deterioraç­ão das contas públicas. E deve exigir desgastant­e relaxament­o das metas fiscais de 2017 e 2018.

Nesse quadro, a eleição de um candidato comprometi­do com a manutenção do esforço de ajuste fiscal no próximo mandato se tornou muito mais incerta do que parecia há poucos meses.

São percepções complement­ares de uma realidade complexa e em rápida mutação. O desafio é combiná-las de forma realista. Ao tentar sobrepor as duas imagens, é importante separar o que é análise do que pode ser só torcida e autoengano.

O desafio na situação atual é conseguir separar o que é análise do que pode ser apenas torcida e autoengano

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil