O Estado de S. Paulo

Linguagem da mão

- MILTON HATOUM E-MAIL: MILTON.HATOUM@ESTADAO.COM MILTON HATOUM ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Uma amiga me disse que em alguns cursos da Universida­de de Princeton o celular e o iPad foram proibidos porque os estudantes filmavam e fotografav­am as aulas, ou simplesmen­te brincavam com joguinhos eletrônico­s. A proibição do uso de aparelhos eletrônico­s em sala de aula numa das maiores universida­des dos Estados Unidos e do mundo não é nada desprezíve­l. O celular na palma da mão desconcent­ra o estudante e abole uma prática antiga: a caligrafia.

Dos milenares hieróglifo­s egípcios gravados em pedra e palavras escritas em pergaminho à mais recente prescrição médica, a caligrafia tem uma longa história. Mas essa história – que marca uma forte relação da palavra com o gesto da mão – parece fenecer com o advento do minúsculo teclado e sua tela.

Lembro uma entrevista radiofônic­a com Roland Barthes, em que o grande crítico francês dizia que as correções das provas tipográfic­as dos romances de Balzac pareciam fogos de artifícios. É uma bela imagem do efeito estético da caligrafia no papel impresso, da relação do corpo com a escrita, as letras que vêm da mão, e não da máquina. Quando pude ver essas páginas numa exposição de manuscrito­s, fiquei impression­ado com a metáfora precisa de Barthes, e admirado com a obsessão de Balzac em acrescenta­r, cortar e substituir palavras e frases, e alterar a pontuação, como se a respiração e o tempo da leitura fossem – como de fato são – importante­s para o ritmo da escrita. O autor de Ilusões Perdidas não poupava esforço para alcançar o que desejava expressar, e esse empenho tão grande acabou por exauri-lo quando escrevia César Birotteau, seu último romance.

Mas há beleza também na caligrafia torta e hesitante de uma criança, numa carta de amor escrita a lápis ou à tinta, na mensagem pintada à mão no parachoque de um caminhão, nas paredes de banheiros públicos, no muro grafitado da cidade poluída, nada impoluta. Quem não terá lido e anotado frases de escritores anônimos, que expressam sentimento­s e ideias na traseira de veículos ou nos muros de uma cidade? Frases como “Já chegamos no fundão do poço escuro” e “Aquele Padilha lá de Brasília rima com quê?”, ambas escritas à mão, parecem tão atuais…

A primeira frase, escrita na traseira de um caminhão, é uma variante popular de um verso de Dante; a segunda, um desabafo de um brasileiro que foi se aliviar num banheiro asfixiante de tanto fedor.

Num de seus poemas memoráveis (O Sobreviven­te), Carlos Drummond de Andrade escreveu à mão e depois datilograf­ou: “Há máquinas terrivelme­nte complicada­s para as necessidad­es mais simples. / Se você quer fumar um charuto aperte um botão”.

Se você quer prestar atenção a uma aula, não use uma máquina nem se distraia com ela. Isso é o que parece dizer a seus alunos a Universida­de de Princeton e outras universida­des e escolas.

Na mão que move a escrita há um gesto corporal atávico, um desejo da nossa ancestrali­dade, que a maquininha subtrai, ou até mesmo anula. Ainda escrevo alguns textos à mão, antes de digitá-los no computador. No trabalho diário de um jornalista, isso é quase impossível, mas na escrita de uma crônica, pego a caneta e o papel e exercito minha pobre caligrafia.

Talvez eu seja o antepenúlt­imo dinossauro. Mal escrevo essa palavra, vejo um dos minúsculos seres que se originaram de um dinossauro emplumado. É um pássaro que desconheço; pousou num galho do manacá florido, e seu canto misterioso nesta tarde fria e ensolarada me remete ao livro A Linguagem dos Pássaros, escrito no século 12 pelo grande poeta persa Farid Ud-din Attar. Nele, a caligrafia é sinônimo de “beleza da escrita, linguagem da mão e nobreza do sentimento”.

Há beleza na caligrafia torta e hesitante de uma criança e em uma carta de amor escrita a lápis

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