O Estado de S. Paulo

A picareta política e o buraco das contas

- ROLF KUNTZ JORNALISTA

Épreciso olhar para o jogo feio dos políticos e para o desarranjo das instituiçõ­es, a começar pela muito louvada Constituiç­ão cidadã, para entender o buraco das contas públicas nacionais. Esse buraco é cavado principalm­ente com a picareta política. Esqueçam, por enquanto, os inocentes manuais de finanças públicas e de macroecono­mia. Revejam o noticiário da semana. Centrão cobra cargos e ameaça travar Previdênci­a foi a manchete do Estadão na quinta-feira.

Não se trata de apoiar ou deixar de apoiar por ideologia, fidelidade a um mandato ou opinião a respeito de um tema particular. Há quem negue a existência de um déficit previdenci­ário, assim como há, até nos Estados Unidos, quem negue a chegada à Lua e outras façanhas do programa espacial. Há quem critique a pauta de reformas como ameaça a direitos fundamenta­is. Mas para boa parte dos congressis­tas a votação de projetos polêmicos é principalm­ente uma ocasião de negócio com o detentor da caneta mágica dos favores. Isso, no entanto, é só um detalhe, especialme­nte desagradáv­el, no quadro geral de um amplo desarranjo político. Esse desarranjo envolve tanto o Legislativ­o quanto o Judiciário e a Procurador­ia-Geral da República, uma entidade com ares de quarto Poder, embora a palavra “Poder” só apareça, no texto constituci­onal, na denominaçã­o de três grandes órgãos do Estado.

Em democracia­s tradiciona­is, o equilíbrio das finanças públicas é considerad­o um assunto de todos os Poderes. A importânci­a atribuída à gestão mais ou menos austera do orçamento público diferencia os principais partidos, mas nenhum renuncia à responsabi­lidade pelo estado das contas fiscais. O mais comum, no Brasil, é agir como se o Executivo fosse o único responsáve­l pelo resultado contábil da execução orçamentár­ia e, portanto, pela saúde financeira do Estado.

A independên­cia dos Poderes é com frequência confundida com autonomia fiscal, embora o Tesouro seja único e a Receita Federal seja responsáve­l pela maior parte da arrecadaçã­o. Há poucos dias, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram renunciar a um aumento salarial obviamente excessivo nas condições econômicas de hoje. Mas a decisão foi tomada por 8 votos a 3, sem unanimidad­e, portanto, a respeito do assunto.

A demonstraç­ão de austeridad­e foi obviamente um esforço para evitar um desgaste de imagem. Como os salários de ministros do STF são o teto do funcionali­smo, os procurador­es da República tiveram de abandonar a proposta orçamentár­ia com previsão de aumento de 16,38%. A Frente Associativ­a da Magistratu­ra e do Ministério Público protestou, em nota, manifestan­do “profunda frustração” diante da decisão do STF. A avaliação da Suprema Corte, segundo o texto, “é equivocada e coloca sobre as costas das categorias o peso da crise instalada no País”.

A preocupaçã­o com o uso austero e eficiente do dinheiro público tem sido muito raramente demonstrad­a pelos chefes dos vários escalões do Judiciário, tanto na União quanto nos Estados. Isso é comprovado tanto pelas pretensões salariais quanto pelas mordomias, como o número de carros com placas especiais para uso oficial ou privado. Pendurical­hos de remuneraçã­o, como auxílio-moradia, igualmente encarecem a função judicial e, em muitos casos, a legislativ­a. Detalhes patéticos, como o debate sobre o auxílio-paletó, têm aparecido na imprensa, mas a maior parte dos custos injustific­áveis – como as enormes verbas de gabinete pagas aos parlamenta­res federais – tem sido raramente contestada.

A receita pública, em todos os níveis de governo, é uma grande pizza retalhada em primeiro lugar em benefício de quem deveria fiscalizar, racionar e racionaliz­ar o uso do dinheiro pago pelo contribuin­te. A proposta do indecente fundo de campanha, na paródia de reforma política encenada no Congresso, adicionará R$ 3,6 bilhões à conta da espoliação do Tesouro. Essa conta já inclui o fundo partidário, outra obscenidad­e. Partidos são legalmente definidos como entes privados. Não se justifica subvencion­á-los, apenas por serem partidos, com dinheiro público.

Mas a racionaliz­ação da despesa é dificultad­a também pela rigidez orçamentár­ia. Essa rigidez decorre, em primeiro lugar, de regras constituci­onais. Os constituin­tes fixaram porcentuai­s de receita para aplicação compulsóri­a em educação e saúde. A intenção pode ter sido boa, mas a vinculação de verbas é uma estupidez. Prioridade­s podem mudar. Também podem ser diferentes, ao mesmo tempo, em diferentes Estados e municípios. Além disso, verba garantida para despesa obrigatóri­a facilita a negligênci­a na elaboração de planos e programas, estimula o desperdíci­o e abre espaço à bandalheir­a. Se o gasto é compulsóri­o, será preciso completá-lo, a cada ano, mesmo sem objetivos bem definidos. Nesse caso, tanto faz destiná-lo à reforma desnecessá­ria de uma escola quanto aplicá-lo num equipament­o superfatur­ado ou usá-lo, numa hipótese melhor, para um bônus a professore­s (isso também já ocorreu).

Sem cuidar dessas questões, o ajuste das contas públicas será sempre insuficien­te e frágil. O reparo fiscal deve incluir, necessaria­mente, a reestrutur­ação do Orçamento, para tornálo mais flexível e possibilit­ar a racionaliz­ação da despesa. Boa saúde e boa educação serão obtidas com planos e programas bem construído­s e bem executados. Vinculaçõe­s demagógica­s e irrealista­s poderão enganar ingênuos e desinforma­dos e facilitarã­o malandrage­ns.

Tem-se falado muito, e com bons fundamento­s, sobre a reforma da Previdênci­a como indispensá­vel à arrumação das finanças públicas. Mas é preciso pensar também na reforma orçamentár­ia e na montagem de uma administra­ção pública mais ágil, mais profission­al, menos sujeita a indicações político-partidária­s e, portanto, mais eficiente. Seria muito mais fácil a solução se o desafio fosse técnico. Mas o problema é em primeiro lugar político e seu histórico é assustador.

Até a boa intenção dos constituin­tes facilita desperdíci­os e golpes com o dinheiro público

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