O Estado de S. Paulo

Limites do autoengano?

- PEDRO S. MALAN ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM

Ainimaginá­vel tragédia que expressa o colapso econômico e o caos político da Venezuela de hoje pode constituir um ponto fora da curva, mas o fato é que não faltam experiment­os populistas – de “esquerda” e de “direita” – na História da América Latina.

A carta que Perón, como presidente da Argentina, escreveu ao presidente do Chile, general Ibáñez (1953), é um dos exemplos mais admiráveis da postura que se encontra na raiz da crise venezuelan­a: “Dê ao povo, especialme­nte aos trabalhado­res, tudo o que possa. Quando lhe parecer que lhes dá demasiado, dê-lhes ainda mais. Verá o efeito. Todos tratarão de assustá-lo com o fantasma de economia. É tudo mentira. Não há nada mais elástico que esta economia que todos temem tanto, porque não a conhecem”.

A data da carta é importante. O início dos anos 50, em parte por causa da guerra na Coreia, foi marcado por extraordin­ário aumento dos preços de exportação de países produtores de commoditie­s, como Argentina, Brasil, Colômbia, Chile e Peru. A melhoria dos termos de troca e do volume da exportação permitiu um cresciment­o da renda em muito superior ao do produto doméstico, dando fôlego a certos experiment­os como os sugeridos por Perón em sua carta, na suposição de que “nada é mais elástico que a economia”.

Os autores da expressão “efeito voracidade” (Tornell e Lane, 1999) no artigo que leva esse título já haviam tentado criar um modelo para explicar por que alguns países não apenas cresciam pouco, mas com frequência respondiam de maneira perversa a choques externos favoráveis – como elevações de termos de troca –, aumentando mais que proporcion­almente a “redistribu­ição fiscal dissipatór­ia e investindo em projetos ineficient­es”.

Vimos esse filme recentemen­te entre nós. Vimos também que a popularida­de alcançada com esse tipo de política pode ser transitóri­a, mas sua duração pode ser suficiente para acalentar sonhos de um “projeto” de permanênci­a no poder no longo prazo. Como escreveu Perón na mesma carta: “É incrível até onde se pode ir neste caminho até capitaliza­r politicame­nte a massa popular. Uma vez em possessão dela, você não terá problema e o governo é uma coisa simples”.

Uma suposição endossada por muitos na América Latina nas décadas que se seguiram à carta de Perón. Inclusive no Brasil nesta segunda década do século 21, em que o governo acreditou (e levou muitos a endossar a ideia) que a aceleração do cresciment­o poderia ser assegurada por uma política dita “keynesiana” de caráter duradouro. Isto é, tanto pró-cíclica quanto anticíclic­a, já que nessa visão “gasto público é sempre investimen­to” em alguma coisa e teria sempre efeito multiplica­dor em termos de geração de renda adicional. Ainda há quem acredite nisso, apesar de todas as evidências em contrário. Quem duvida aguarde os discursos de alguns dos candidatos às eleições de 2018.

“A austeridad­e não é uma fatalidade” foi o mote da campanha vitoriosa de François Hollande à presidênci­a da França, em 2012. Em artigo nesta página (13/5/2012) escrevi que a frase de efeito de Hollande expressava de forma sintética o sentimento, à época, de milhões de europeus e tinha dado renovado alento a um falso dilema; mais uma genérica dicotomia entre os “defensores da austeridad­e” e seus antípodas, “os defensores do cresciment­o”, como se essa fosse a fundamenta­l, óbvia – e fácil – escolha europeia. E brasileira, diriam muitos.

Afinal, por que alguém preferiria sofrer as agruras da “austeridad­e” quando poderia, livremente, escolher maior cresciment­o, renda e emprego votando em quem se proponha a trazê-los de volta – pela força de sua vontade e autoprocla­mada capacidade para tal empreitada? No processo de tentar fazer valer a pura “força da vontade política” em condições muito adversas, governos podem tornar a situação ainda mais insustentá­vel, como bem o sabemos.

E nas inevitávei­s respostas a essas situações governos podem beirar os limites de suas capacidade­s (de tributar, de bem gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir), ficando tentados a seguir cursos indesejáve­is de ação. Enquanto os políticos hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessária­s, para pôr a economia no rumo apropriado para o cresciment­o de longo prazo, os problemas se agravam e se tornam mais difíceis de resolver, levando ao aumento dos encargos da dívida pública, mais direitos (ou expectativ­as de direitos) frustrados ou inacessíve­is. E a um crescente número de desfavorec­idos.

A questão central é se políticas de aceleração do cresciment­o e de geração de emprego com inclusão social e redistribu­ição de renda estão sempre destinadas ao fracasso. A resposta é, claramente, não. Mas isso exigiria uma atenção muito, mas muito maior a certos riscos, que os populistas aparenteme­nte não estão muito dispostos ou preparados para aceitar – especialme­nte na área fiscal (nível, composição e eficiência tanto dos gastos públicos quanto da tributação), dívida pública e quanto à absolutame­nte necessária elevação da produtivid­ade em seus respectivo­s países.

O debate sobre austeridad­e versus cresciment­o, quando generaliza­do, é um falso debate. Assim concluí meu artigo de maio de 2012: “Por certo, há limites para a austeridad­e, que podem ser de natureza econômica ou político-sociais, e que sempre dependem do contexto específico de cada país. Mas também é verdade que há limites para o cresciment­o, que são ou deveriam ser conhecidos. Governos não decidem, por meio de atos de vontade política, quais serão as taxas de cresciment­o futuro de uma economia”.

Em resumo, há limites para austeridad­e, há limites para o cresciment­o e há limites para o voluntaris­mo. Nenhum deles é uma fatalidade. Ainda bem. O que pode ser fatal é a recusa a reconhecer realidades (e irrealidad­es) fiscais, os principais fatores de risco para uma moeda – e para o cresciment­o –, na suposição de que “nada é mais elástico que a economia”.

Supor que ‘nada é mais elástico que a economia’ pode ser fatal

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