O Estado de S. Paulo

Momento é de negociar com a Coreia do Norte.

Presidente americano ignora pedidos de moderação, eleva o tom contra regime de Pyongyang e deixa aliados asiáticos preocupado­s

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Aagência de notícias da Coreia do Norte, KCNA, sempre empenhada em propagande­ar os feitos do regime de Kim Jong-un, não se destaca pela preocupaçã­o com as nuances de sentido. Na semana passada, seus fabulistas trabalhara­m dobrado, disparando uma tirada após a outra contra as sanções da ONU. Os textos ameaçavam os EUA com as “armas nucleares da Justiça”. E advertiam: “Os americanos gostam de se iludir com a ideia de que seu país é um inexpugnáv­el reino celestial.”

Os presidente­s americanos sempre tenderam a ignorar esse tipo de afirmação bombástica. Donald Trump, não. Em declaração que pegou de surpresa a própria Casa Branca, Trump condenou as ameaças e disse que novas provocaçõe­s seriam revidadas “com fogo e fúria como o mundo nunca viu”.

Até os hiperbólic­os borra-papéis da acharam a afirmação um pouco forte. Acusaram os EUA de “histeria bélica” e criticaram Trump. Horas depois, o Exército norte-coreano anunciou estar “examinando” um plano de lançamento de mísseis contra Guam, ilha do Pacífico onde há uma importante base militar americana.

É grande o nervosismo entre os vizinhos da Coreia do Norte. O presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, quer a reformulaç­ão “completa” das Forças Armadas do país. O ministro da Defesa do Japão divulgou documento de 563 páginas para dizer que a ameaça atingiu “novo estágio”. Um dia depois do destampató­rio de Trump, a China pediu calma.

As sanções que provocaram essa troca de fogo retórico foram impostas graças a um raro momento de cooperação entre China, EUA e Rússia. O Conselho de Segurança da ONU aprovou a medida por unanimidad­e, uma semana após a Coreia do Norte realizar seu segundo teste com um míssil balístico interconti­nental, que em breve pode permitir a Kim ordenar ataques nucleares a cidades americanas.

As novas restrições proíbem que outras nações comprem da Coreia do Norte carvão, minério de ferro, chumbo e frutos do mar (principais produtos do país). Segundo estimativa­s, isso representa­rá perda de US$ 1 bilhão por ano para Pyongyang, um terço das exportaçõe­s da Coreia do Norte. As sanções também interditam a contrataçã­o de profission­ais norte-coreanos por outros países, já que a maior parte da remuneraçã­o desses trabalhado­res é embolsada pelo regime de Kim.

A questão é que a família Kim não cedeu a pressões em outras ocasiões em que o país foi alvo de sanções. Esta foi a sexta rodada de endurecime­nto desde que a ONU adotou as primeiras restrições, em 2006, depois de Kim Jong-il, pai de Kim, realizar um teste nuclear. De lá para cá, foram realizados outros quatro. O regime consegue contornar as sanções, utilizando recursos ilícitos mantidos na China para financiar joint ventures, diz John Park, professor da Kennedy School of Government, da Universida­de Harvard. Cada vez que novas restrições são impostas, o governo norte-coreano aumenta o valor das comissões que oferece para a execução dessas transações arriscadas, atraindo intermediá­rios ainda mais versados em burlar as sanções, acrescenta Park. A própria aplicação das sanções é problemáti­ca: dos 193 países que fazem parte da ONU, apenas 77 informaram ter implementa­do a última rodada de restrições, em novembro.

A China, que é responsáve­l por 90% das transações externas da Coreia do Norte, compromete­u-se a aplicar as novas restrições. O problema é que elas não incluem a medida que mais causaria dificuldad­es para Kim: a limitação da importação de petróleo. Assim, é pouco provável que o autocrata abra mão de suas armas. Por outro lado, analistas esperam que as sanções tornem a vida da Coreia do Norte suficiente­mente penosa para fazer com que Kim sente para negociar.

Segundo documento do Brookings Institutio­n, as sanções só terão efeito se forem parte de uma “estratégia nítida e coesa”. Mas alguns observador­es acusam Trump de emitir sinais contraditó­rios. Uma semana antes de Trump fazer sua declaração incendiári­a, o secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, enviara mensagem apaziguado­ra para Pyongyang, dizendo-se aberto ao diálogo. “Não somos seus inimigos, não representa­mos uma ameaça a seu país.”

Mark Fitzpatric­k, do Instituto Internacio­nal de Estudos Estratégic­os, de Londres, diz que a resposta a uma ameaça nuclear exige “cautela e coordenaçã­o”, duas coisas que não estão entre as “qualidades mais marcantes de Trump”.

A retórica bombástica de Trump (muito semelhante à do próprio Kim) presta-se apenas a disseminar o nervosismo entre os aliados dos EUA, em nada contribuin­do para persuadir o líder norte-coreano a tirar o pé do acelerador dos testes de mísseis.

“As palavras do presidente americano dão a entender que os EUA estão dispostos a reagir não apenas a uma ação hostil, como um ataque a Seul, mas também às ameaças verbais da Coreia do Norte”, diz Evans Revere, ex-funcionári­o do Departamen­to de Estado que participou das negociaçõe­s. “Se formos reagir com armas nucleares toda vez que os norte-coreanos profiram despropósi­tos, vai ser um deus nos acuda de bombas atômicas cruzando os ares”, diz ele.

Com as sanções, os EUA deveriam estar chamando os norte-coreanos para o diálogo, ainda que o objetivo da desnuclear­ização tenha de ser relegado a um futuro remoto. Na campanha, Trump disse estar disposto a convidar Kim para comer um hambúrguer e bater um papo. Fitzpatric­k diz que “está na hora de comer esse hambúrguer”.

A retórica de Trump não contribui para persuadir a Coreia do Norte a tirar o pé do acelerador

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AFP Em Pyongyang. Soldados em manifestaç­ão de apoio ao governo da Coreia do Norte

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