O Estado de S. Paulo

‘Lei de Gérson’

- ROBERTO RODRIGUES E-MAIL: RRCERES75@GMAIL.COM ROBERTO RODRIGUES ESCREVE NO SEGUNDO DOMINGO DO MÊS

Expressão transformo­u-se numa espécie de diploma do espertinho, do sabido

Gérson de Oliveira Nunes foi um dos maiores craques meio-campistas de todos os tempos no futebol brasileiro. Com sua esquerda certeira, fazia lançamento­s de qualquer distância para qualquer posição no gramado, colocando a bola onde queria e onde queria quem a recebia, especialme­nte se atacante. Cerebral, estrategis­ta, foi o maestro da seleção brasileira de 1970 tricampeã mundial no México, mesmo tendo companheir­os extraordin­ários e em grande forma, como o magistral e único Pelé, como Tostão, Jairzinho, Rivellino, Carlos Alberto, Clodoaldo, Paulo César Caju, Piazza e outros.

Admirado e respeitado por torcedores de qualquer equipe, Gérson, apelidado “Canhotinha de Ouro”, teve um arrependim­ento penoso em sua vida. E não foi nenhum erro em campo, nenhum pênalti mal cobrado ou um passe desperdiça­do, nenhuma falta violenta.

Em 1976, contratado pela empresa de comunicaçã­o Caio Domingues & Associados, fez uma propaganda da marca de cigarros Vila Rica, fabricado pela J. Reynolds. Na peça publicitár­ia, Gérson concedia entrevista a um interlocut­or justifican­do o porquê de sua preferênci­a pela marca. E disse: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”

“Levar vantagem em tudo” foi a frase que ficou eternizada como uma jogada de gente esperta, malandra, quase sem ética alguma; mesmo hoje, quando grande parte de quem se refere à “Lei de Gérson” nem sabe quem foi o grande meia armador tricampeão mundial, a citação tem a ver com o oportunist­a de ocasião que só se preocupa consigo mesmo, pouco se lixando para o resto da humanidade. É o comportame­nto do picareta que tira vantagem até de quem é indefeso em uma situação qualquer.

Por isso, Gérson se arrependeu amargament­e de sua fala. Embora não fosse essa a intenção do marqueteir­o, foi ela que restou para sempre, e a imagem do craque correto e bom companheir­o lamentavel­mente se misturou a ela. A expressão foi apropriada pelos usos e costumes brasileiro­s, transfor- mando-se numa espécie de diploma do espertinho, do sabido que ganha todas, sem escrúpulos, que só cuida do seu interesse, do seu estômago.

E é isso que se observa no cotidiano de toda gente. No trânsito, sempre tem quem corte pela direita ou na contramão, para ganhar duas ou três posições no semáforo; furar fila em qualquer evento parece gesto de sabedoria, de agilidade mental. Fechar a porta do elevador na cara do outro é normal. Colar na prova, assinar um trabalho de equipe sem ter escrito uma única linha, falsificar documento para pagar meia-entrada, enganar o bedel, tudo normal. Pular a cancela do metrô, sentar na numerada tendo pago só geral no estádio, enganar o vendedor. Prometer o impossível, até em campanhas eleitorais... Sonegar imposto, invadir propriedad­e alheia, atrasar pagamento de dívida para ganhar algum na aplicação financeira, idem. E tantas mutretinha­s e mutretonas como as que temos assistido, perplexos, nas delações sem fim na política brasileira. Apesar do risco da banalizaçã­o da denúncia, a verdade é que a “Lei de Gérson” é usada sem parcimônia em todo lugar, inclusive em Brasília. Daí que praticá-la no dia a dia acaba virando uma coisa normal para o cidadão comum. Quase como se tonto fosse quem não a usasse.

É preciso mudar isso. Nas mínimas coisas da vida cotidiana, o respeito pelo direito do próximo, começando pelo de “ir e vir” é absolutame­nte essencial para o bem-estar coletivo. A atenção para com os mais velhos, acatamento aos professore­s, a integridad­e da propriedad­e, o cumpriment­o dos contratos, o estado de direito enfim, são elementos basilares para a construção de uma sociedade digna e equitativa. Sem isso, descamba-se para o descontrol­e e para a falta de comando, destrói-se a autoridade, vem a corrupção e a violência.

Gérson era um atleta clássico, um artista em campo, os aficionado­s da minha geração o aplaudiam e torciam por ele. Essa lei que leva seu nome não faz jus à herança desportiva que nos deixou com sua categoria ímpar. Temos de revogá-la.

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