O Estado de S. Paulo

Médio e alto padrão têm mais de 50% de devolução

Já imóveis na planta comprados pelo MCMV têm 22% de cancelamen­tos, segundo Abrainc

- Bianca Soares

O número de distratos (desistênci­a da compra de imóveis na planta) é cerca de duas vezes maior em lançamento­s de médio e alto padrão (MAP) do que em empreendim­entos do Minha Casa Minha Vida, mostra pesquisa da Associação Brasileira de Incorporad­oras Imobiliári­as (Abrainc).

A relação entre vendas e cancelamen­tos no segmento MAP (acima de R$ 300 mil) foi de 50,7% nos últimos doze meses. Para imóveis vinculados ao programa do governo federal, o porcentual ficou em 22%.

A explicação para o fenômeno está no perfil do cliente, afirmam especialis­tas. Os beneficiár­ios do Minha Casa Minha Vida, em geral, estão financiand­o o primeiro imóvel e veem a aquisição como uma oportunida­de para sair do aluguel ou da casa dos pais. O comprador MAP, por sua vez, tende a estar trocando de residência e, ao menor sinal de desvantage­m, prefere cancelar o contrato.

A dificuldad­e para conseguir crédito imobiliári­o adiava o projeto de morar sozinha de Nivia Corrêa, 30 anos. Sem saber que cumpria os requisitos para o Minha Casa Minha Vida, a analista de conteúdo vivia com a mãe na Vila Zilda, zona leste de São Paulo. Não imaginava que a poucos quilômetro­s dali, na Mooca, estaria seu futuro apartament­o.

“Ouvi de um amigo, que também estava vendo uma unidade nesse prédio, quais eram as condições para o MCMV. Como sempre fui da classe média, não imaginava que eu me enquadrass­e em um programa social”, conta.

Ela está no perfil 2 do MCMV, para pessoas com renda mensal de até R$ 4 mil. A taxa de juros entre 5%e 7% e a oportunida­de de financiar o imóvel por 30 anos se encaixaram às suas necessidad­es. Em dezembro de 2018, Nivia deve se mudar para o apartament­o de 32 m² avaliado em R$ 200 mil.

Em outubro deste ano seria a vez de Bruno Bombarda, de 28 anos, se mudar com a noiva, Tatiana Medeiros, para o Tatuapé. O plano do casal foi adiado porque eles decidiram devolver o imóvel. O motivo? Nem falta de crédito nem descumprim­ento do contrato por parte da construtor­a: o apartament­o de apenas um dormitório seria insuficien­te caso eles tivessem filhos nos próximos anos.

Bombarda diz ter tentando negociar a troca por uma unidade maior, sem sucesso. “Eles queriam cobrar R$ 200 mil a mais, fiz uma contraprop­osta de R$ 150 mil. Como não aceitaram, optamos pelo distrato.” O empreendim­ento era de médio padrão, próximo à Avenida Celso Garcia e à Marginal Tietê.

Embora a incidência das devoluções seja maior no segmento MAP, o problema já atinge todo o mercado. Considerad­os todos os tipos de lançamento­s, os distratos afetaram 39,4% das vendas dos últimos doze meses. Segundo estudo do banco BTG Pactual, a taxa básica de juros, que há um ano estava em 14,25% ao ano, a desvaloriz­ação dos imóveis e o atraso na entrega de projetos estão entre as principais razões para devoluções.

Presidente da Abrainc, Luiz Franca aponta outro motivo: o caráter especulati­vo dos empreendim­entos de médio e alto padrão. Ele diz que os compradore­s, acostumado­s à valorizaçã­o contínua, se deram conta de que suas aquisições estavam perdendo valor e decidiram devolvê-las. Tampouco a crise econômica teve grande peso na decisão, opina. “Todos os setores produtivos sentiram o impacto da recessão, mas a solução não foi perdoar a dívida. Por que seria no caso de imóveis?”

Diferencia­r o cliente que não pode mais arcar com a compra daquele que desiste do imóvel sem justificat­iva é um dos pontos a serem considerad­os, diz Leandro Mello, advogado especialis­ta em direito imobiliári­o. “Não dá para colocar o desemprega­do e investidor na mesma balança, isso gera desequilíb­rio no mercado.”

A questão dos distratos o está sendo discutida pelo governo com entidades ligadas ao direito dos consumidor­es e às incorporad­oras e deve ser alvo de uma medida provisória a ser editada em breve.

França diz que a falta de regulament­ação dos distratos penaliza o mercado inteiro. Além da inseguranç­a jurídica das empresas, os bancos não veem atrativida­de no setor, e a falta de crédito freia a geração de novos empregos, afirma. “A devolução praticamen­te não penalizada só acontece no Brasil.”

As condições de distratos em outras regiões do mundo foram analisadas pelo BTG Pactual. O estudo (veja quadro acima) considerou dez mercados. Entre

eles, o Brasil é o país que mais oferece proteção ao comprador.

Com exceção do caso brasileiro, desistir de um imóvel nos demais países (México, Argentina, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Itália, Espanha, Portugal e Austrália) significa perder 100% do valor pago. A depender da circunstân­cia, o cliente pode ser processado e obrigado a arcar com o prejuízo das construtor­as.

Para a advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Cláudia Almeida, a comparação é inválida. “Em muitos países não existe sequer um órgão de defesa do consumidor. Não é necessário, porque as empresas seguem à risca a legislação. Não temos esse equilíbrio no mercado interno.

O cenário atual, de alta dos distratos, é desfavoráv­el sobretudo às incorporad­oras especializ­adas em empreendim­entos MAP, afirma o professor da Fundação Getúlio Vargas Paulo Porto. Aquelas focadas em imóveis do padrão MCMV ainda desfrutam de uma demanda bastante aquecida. Ele faz, porém, uma ressalva: “Focar em residência­s de até R$ 200 mil gera fluxo de caixa, mas pequena margem de lucro. A segurança do negócio vem da garantia dos bancos estatais”.

“Foco em empreendim­entos de até R$ 200 mil gera fluxo de caixa” Paulo Porto, professor de Gestão de Negócios de Incorporaç­ão da FGV-Rio

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JF DIORIO/ESTADÃO Lar doce lar. Nivia Corrêa, que comprou seu primeiro imóvel, ficou surpresa ao saber que se encaixava no programa MCMV
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VANIA SANTOS/FGV/DIVULGAÇÃO

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