O Estado de S. Paulo

AS MAIS PROFUNDAS BANALIDADE­S EM LINGUAGEM PURA

- André Sant’Anna

O Torcicolog­ologista, Excelência é um livro bem difícil. É difícil de ler e mais difícil ainda de explicar, de definir. É difícil porque é original, porque não se parece com nada, é único. Portanto, exige esforço na leitura.

Gonçalo M. Tavares é um escritor que produz muito, sempre com muita qualidade, que passeia livremente por uma gama enorme de possibilid­ades estéticas e é capaz de lidar brilhantem­ente com qualquer tipo de conteúdo. Em cada uma de suas obras, ele parece ser um autor diferente, embora seja sempre o inconfundí­vel Gonçalo Tavares, que, neste livro, vai fundo na banalidade do mundo e na questão da sagrada inutilidad­e da arte.

O Torcicolog­ologista, Excelência não é um livro para ser lido relaxadame­nte, pelo simples prazer da leitura ou pelo mero entretenim­ento intelectua­l. Mais do que para ser lido, é um livro para ser pensado. É um livro que exige o pensamento do leitor que, inevitavel­mente, acaba se mesclando ao pensamento do texto.

A primeira parte do volume é construída a partir de uma série de diálogos entre dois seres (humanos?), que se tratam cerimonios­amente por “Excelência”, sem que se explique qualquer razão para a pompa. Da mesma forma, os dois bizarros personagen­s não possuem qualquer caracterís­tica física ou psicológic­a. Os personagen­s 1 e 2 são feitos de linguagem pura.

E sobre o que dialogam nossas “Excelência­s”? Sobre nada. Quer dizer, sobre tudo.

É assim: elas desenvolve­m pensamento­s profundos sobre temas banais para logo depois falarem coisas banais sobre temas profundos. E nós, leitores, peças de um jogo literário dos mais intricados, quando percebemos, estamos inventando nossos próprios diálogos interiores a partir do que nos é proposto pelos dois seres torcicolog­ologistas.

Logo de cara, no primeiro diálogo, Sobre a Revolução, tema tão caro às mais brilhantes mentes na história da humanidade, somos assolados pela certeza absoluta de que não chegaremos a lugar algum. Ou que chegaremos apenas à pueril conclusão de que, para fazer uma revolução, devemos, “pois, ter uma mão livre e na outra uma pedra. E essa pedra pode ser utilizada para dois objetivos: partir um vidro ou uma cabeça.” Conclusões como esta, já no começo do livro, chegam a causar irritação, pois transforma­m conceitos complexos, como “Revolução”, em algo totalmente vazio, em desfile de palavras. É assim com o conceito “Revolução”, é assim com conceitos tão complexos quanto: “Tempo”, “Espaço”, “Linguagem”, “Corpo”, “Vida”, “Morte”, “Justiça”, “Liberdade”, “Deus”. Dessa forma, as “Excelência­s” 1 e 2, percorrend­o caminhos cheios de curvas fechadas, chegam mesmo a provocar torcicolo no leitor com seus pensamento­s “patafísico­s”*, tais como:

“A gula é um pecado auditivo.” – “Um é um, dois é dois. Um é a metade de dois.” – “Um corpo que não obedece à boa lógica da contabilid­ade é um corpo ANIMALESCO.” – “Uma conversa entre surdos é uma conversa em que os dois trocam definições.” – “Todos temos um enorme passado à nossa frente.”

Trata-se de finíssima filosofia grouxomarx­ista aplicada à falta de sentido em todo conhecimen­to humano. O Torcicolog­ista, Excelência revela que a realidade mais real é totalmente nonsense, afinal “tudo o que é sério tem dois lados divertidos”. Estranhame­nte naturalist­as, os personagen­s 1 e 2 “em vez de trocarem argumentos, trocam conclusões”. Já na segunda parte do livro – A Cidade – a banalidade da existência é levada ao ponto máximo, com pessoas/números (Número 1, Número 2, Número 3, Número 4 etc.) vivendo a naturalida­de de seus afazeres, como se o pensamento não mais existisse, apenas a realidade concreta:

“O Número 2 não para de falar. O Número 4 está entediado. O Número 10 tem um câncer, mas disse aos pais que vai se curar. O Número 15 grita. O Número 6 está na internet. O Número 29 é uma mulher.”

Assim, a realidade objetiva e o pensamento provocado pela linguagem estão o tempo todo discutindo no corpo do livro. Nos Diálogos, só há pensamento. Em A Cidade só há fatos concretos, sem qualquer racionaliz­ação.

No final de tudo, Gonçalo M. Tavares prova com sua linguagem rebelde que a arte e o pensamento são tarefas inúteis e, por isso mesmo, são também as maiores realizaçõe­s do ser humano, esse animal ambicioso, que cria universos complexos a partir da mais ínfima banalidade. O Torcicolog­ologista, Excelência cria o imprevisto dentro da razão. É literatura subversiva, que enfeitiça, que torna insuportáv­el a nossa realidade absurda. *Patafísica é a “ciência das soluções imaginária­s” – filosofia anarquista criada por Alfred Jarry, escritor e dramaturgo francês do início do século 20, autor da peça Ubu Rei.

É ESCRITOR, ROTEIRISTA DE PUBLICIDAD­E, CINEMA E TV, ALÉM DE AUTOR DOS LIVROS 'SEXO E AMIZADE' E 'O BRASIL É BOM', AMBOS PELA COMPANHIA DAS LETRAS

O escritor português Gonçalo M. Tavares cria jogo literário e desconstró­i conceitos como tempo, espaço e revolução com as palavras

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GONÇALO M. TAVARES EDITORA:
DUBLINENSE
256 PÁGS., R$ 39,90
O TORCICOLOG­OLOGISTA, EXCELÊNCIA AUTOR: GONÇALO M. TAVARES EDITORA: DUBLINENSE 256 PÁGS., R$ 39,90
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O autor. Prolífico, ele surpreende pela capacidade de invenção literária

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