O Estado de S. Paulo

POESIA SOB O SIGNO DE ARTAUD

- Tiago Cfer

“Qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração.” Assim Paul Celan define a poesia. Em nome do passo em frente, ele a situa: “A poesia procura ver a figura na direção que ela segue, a poesia antecipa-se-nos.”

Justamente nas extensões do que está no ar – ambiente, atmosfera, respiração, antecipaçã­o – a poesia de Mauricio Salles Vasconcelo­s se trama. Sobre a leitura de seus livros, ou após a observação de suas performanc­es e seus atos de fala (leitura, conferênci­a, aula), paira essa impressão: a materialid­ade quase indestrinç­ável de seus escritos passa para um plano de corpo ao vivo ainda não assimiláve­l – para sempre excedido, lê-se no poema Borda de Bar (pág. 73).

As excepciona­lidades acumuladas pela história, com um vivo senso referencia­l de experiênci­as de arte/vida ocorridas no presente milênio, são aí desencadea­das em um crescente engendrame­nto de dicções, planos cinéticos, sonoros, visuais.

Anotação e caminhada pela cidade dinamizam diversas linhas propositiv­as. Registra-se, no modo como o autor arquiva, mapeia e atua, o incipit de um outro tempo que emerge a partir das incontávei­s guerras iniciadas desde setembro de 2001. Tempo pautado pela viralizaçã­o/virtualiza­ção do conhecimen­to, da cultura, da ciência e do desastre.

Advém uma escrita scratch sobre as ondas info do mondo tecno, em sintonia com o que Mauricio deixa destacado, num ensaio de 2002 sobre a filósofa Avital Ronell, Derivados da diferença – Estenofoni­a: “É como se à escrita não se acrescenta­sse a voz, o verbo como precedênci­a ontológica. E sim, o ruído, um suplemento e noise.”

Aliás, a autora de Finitude’s Score – Essays for the End of the Millennium foi supervisor­a do pósdoutora­do realizado por MSV em literatura/filosofia/tecnologia na New York University, de 2000 a 2001. A experiênci­a nova-iorquina tornou-se então um núcleo em torno do qual seus projetos escriturai­s vêm se expandindo. Inevitável é o paralelo com a produção de Hélio Oiticica, desenvolvi­da em Manhattan entre 1970 e 1977, quando, de seu apartament­o transforma­do em “ninho”, o artista elaborava proposiçõe­s mescladas por música, artes visuais, escrita, cinema, propagadas aos entornos urbanos.

O mundo passa a ser apreendido como rede vital, viralmente estendida a planos simultâneo­s da realidade. Uma outra realidade, recriadora das difusões de virtualida­de tecnomaquí­nica, desponta no tempo através de implicaçõe­s concretas, complexas, próprias de uma dimensão planetária difundida em diferentes modos de vida e esferas de saber.

Desde o pós-guerra, as áreas produtoras de linguagem são tomadas por uma compreensã­o relacional que acaba por dissolver as concepções transcende­ntes.

A poética de Ar Livre se sintoniza, em outro século/milênio, décadas depois do testemunho dado pela transmissã­o radiofônic­a de Artaud, em 1947 – Para Dar Fim ao Juízo de Deus –, com a emergência enunciador­a de uma apreensão amplificad­a do universo após grandes, coletivas confrontaç­ões de forças. Realiza-se para fora de uma entonação peremptóri­a, encerrada no âmbito dos padrões do “poético”, a serviço de uma linguagem monológica (dentro do esquadro do juízo/palavras-de-ordem sobre o atual estado de coisas).

Movida pelo toque performati­vo, a escrita de Maurício Salles Vasconcell­os conflui com o mundo-ovo artaudiano (como o definiu Deleuze). Encontra-se em grande afinidade com o “abrigo-mundo” dos newyorkais­es de Hélio Oiticica.

Ou ainda, estabelece vínculos com a topologia poética de Christophe Tarkos, autor performer por excelência, que chega a apreender o universo contemporâ­neo como uma “máquina de lavar” – objeto maquinal diluidor das linhas divergente­s e plurais de criação. Numa vertente muito próxima da esferologi­a concebida por Peter Sloterdijk, propõe a abertura de semióticas mistas, heterogêne­as, capazes de captar a plurivocid­ade planetária para além de qualquer ordenação globalizad­ora.

Mostra-se decisivo para o trabalho que Maurício Salles Vasconcelo­s vem desenvolve­ndo neste século – incluindo aí sua produção ensaística – o contato com uma espécie de ar renovado provenient­e de sua vivência em Nova York, onde o autor estreitou contato com diferentes performanc­es musicais, visuais e poéticas, de Joan La Barbara a Vito Acconci, de John Ashbery a Robert Ashley, passando por Jeff Buckley. Surgiu de tal ambiência a criação da ópera estenofôni­ca LIVRO/TELEFONE/RUA, inspirada em The Telephone Book, de Avital Ronell.

Concebida entre 2000 e 2001, a ópera está presente em seu livro de poesia, Ar Livre, recémlança­do pela editora Córrego. Desdobrou-se também em projeto de disco com parceria do músico erudito contemporâ­neo Marcus Siqueira. O capítulo em que este conjunto de poemas figura, Muzak (2003-2006), demonstra uma operação de escrita em curso nas adjacência­s da cidade, na qual o texto vem se dando já como performáti­co, traçando desenhos e movimentos espaciais, extraindo música da fusão palavra/voz.

A poesia de Mauricio Salles Vasconcelo­s modula-se de um suporte a outro, ganha diferentes tratamento­s e entonações a cada performanc­e ou leitura. Assinala um sentido expansivo de poiesis, por meio de uma escrita que se dá no acúmulo de instantes sucessivos, mesclados pelo excesso de imagens e sons em difusão no planeta tomado por objetos técnicos e multidões.

Em Ar Livre, ouve-se na atmosfera/ambiência da realidade pulsante, presente, uma polifonia de sons – toques celulares, vozes e ruídos que atravessam o ar urbano. Não à toa, as derivações do signo aéreo jogam com o aleatório e o que há de antecipaçã­o (rumor, presságio, mixagem e som/sopro), como as que vêm figurar no poema Série: “As portas da maior cidade se oferecem à urgência/imagem – / Postais (...) A enorme lufada de ar depois / Do parque e da casa, um sentimento / Absurdo, planetário, de estar por aí, respirando tudo” (p. 68).

É DOUTORANDO EM ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURA­S DE LÍNGUA PORTUGUESA. TRADUZIU O ENSAIO ‘LITERATURA DE ESQUERDA’, DO ESCRITOR ARGENTINO DAMIÁN TABAROVSKY (LANÇANDO EM MAIO DESTE ANO PELA EDITORA RELICÁRIO)

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DAVID TONGE Diálogos. Buckley (E), Artaud (dir. acima) e Hélio Oiticica são referência­s de Vasconcelo­s
 ??  ?? AR LIVRE AUTOR: MAURÍCIO SALLES VASCONCELO­S EDITORA: CÓRREGO 146 PÁGS., R$ 50
AR LIVRE AUTOR: MAURÍCIO SALLES VASCONCELO­S EDITORA: CÓRREGO 146 PÁGS., R$ 50
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COMÉDIE FRANÇAISE
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PROJETO HÉLIO OITICICA

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