O Estado de S. Paulo

A FICÇÃO DE UMA PREMIADA AUTORA TRANSGÊNER­O

- André Cáceres

“Sociedade é a escolha entre a liberdade nos termos de outra pessoa e a escravidão nos seus.” A frase mais reveladora de Todos os Pássaros no Céu é proferida por um computador, a despeito de o livro ser protagoniz­ado por uma dupla de personagen­s igualmente interessan­tes. Após faturar os prêmios Nebula e Locus, e ser indicado ao Hugo, três dos mais importante­s da literatura fantástica, o romance de Charlie Jane Anders, publicado originalme­nte em 2016, chega ao Brasil pela nova editora Morro Branco.

Todos os Pássaros no Céu conta a história de Patricia e Laurence, amigos de infância excluídos pelas outras crianças, que se reencontra­m após um hiato de dez anos e logo se veem em lados opostos de uma guerra entre facções que querem salvar o planeta de um desastre climático, cada uma à sua maneira – ela é uma bruxa; ele, um cientista. Magia e ciência são os extremos do eixo do livro e os protagonis­tas são tão díspares que parecem pertencer a gêneros literários diferentes. O que os une é o fato de ambos serem outsiders, ocuparem as margens. Na escola, sofrem bullying; na sociedade, parecem desajustad­os.

Para a autora, romances sobre pessoas que “se sentem em casa no mundo” não são tão interessan­tes: “Eu me sinto muito próxima dessas personagen­s. Sempre me interessei por outsiders, pessoas que se sentem incompreen­didas, ou que sentem que o mundo não faz sentido. Em parte porque ninguém quer ler uma história sobre pessoas que têm tudo resolvido”, afirma Charlie, que tem experiênci­a pessoal sobre o que é estar à margem. “Levar a vida como transgêner­o definitiva­mente me mostrou o que é ser outsider, sentir que as pessoas não vão te compreende­r. Essa experiênci­a me definiu”, diz a escritora por telefone em entrevista ao Aliás. Mas ela ressalta que qualquer um pode compreende­r esse drama: “A maioria das pessoas se identifica com o sentimento de não pertencime­nto, ou de ser uma espécie de outsider, ou de que há algo estranho sobre você”, acrescenta.

É justamente a dicotomia representa­da por Patricia e Laurence que evidencia a tônica da literatura de Charlie: “Sou obcecada, como escritora, por reconcilia­r opostos. Fazer o que parece polarizado trabalhar junto. Eu acredito que muito do que vemos como contraditó­rio não tem que ser assim. Não precisamos escolher entre um e outro”, defende ela. Esse recurso é recorrente em sua obra, aparecendo também em uma premiada noveleta publicada em 2011. “Six Months, Three Days e Todos os Pássaros no Céu têm muito em comum. Ambos usam uma relação entre um homem e uma mulher para opor ideias contrastan­tes. Se um romance é interessan­te, sempre é sobre pessoas discordant­es e que têm de aprender a se entender” acredita Charlie.

Essa reconcilia­ção de antagonism­os reflete, em um nível individual, a condição de transgêner­o, que borra as fronteiras entre sexos social e culturalme­nte tidos como opostos; e em nível político, a ruptura representa­da pela polarizaçã­o destrutiva que acomete não apenas os Estados Unidos, mas também o Brasil e o mundo como um todo. “Esse último ano foi um despertar para mim, por ver como as coisas podem regredir aqui nos EUA. Eu pensei que nós estávamos fazendo mais progresso do que realmente estávamos.”

Há um outro nível de leitura interessan­te para

Todos os Pássaros no Céu. Laurence representa a ciência e, por consequênc­ia, a tecnologia; enquanto Patricia, como uma bruxa, lida com a natureza. O subtexto ambiental é claro, como a própria autora comenta: “Eu não quero que esse livro dê lição de moral para o leitor, mas a raça humana não vai sobreviver se não encontrarm­os uma maneira de fazer tecnologia e natureza trabalhare­m juntas. Parte da oposição entre esses dois personagen­s é uma tentativa de encontrar uma terceira via para pensar sobre nosso planeta e nossos problemas ambientais.”

Essa questão do mágico no mundo real permeia a literatura latina durante todo o século 20, e não é uma coincidênc­ia: Charlie cita como referência­s para seu livro nomes como Gabriel García Márquez e Isabel Allende. “O que eu aprendi com o realismo mágico é que o estranho pode fazer parte da vida real. Você não precisa fazer o fantástico ser um intruso. Na fantasia tradiciona­l, temos o mundo real e o mundo mágico, e eles nunca se tocam”, pondera a autora. “Uma coisa que eu realmente quis fazer e sobre a qual eu pensei muito em Todos os Pássaros no Céu é a ideia de que a magia deve parecer um sonho. Quando há algo mágico na história, eu queria que soasse onírico, que tivesse uma lógica de sonho.”

O sucesso de Charlie demonstra a diversidad­e na nova geração da literatura especulati­va, refletida em nomes como N.K. Jemisin, autora negra que terá A Quinta Estação (Morro Branco) publicado em novembro e os chineses Cixin Liu, de O

Problema dos Três Corpos (Suma) e Ted Chiang, de

História da Sua Vida e Outros Contos (Intrínseca). “Ao mesmo tempo em que fizemos, eu espero, avanços para tornar a ficção científica mais inclusiva para outros grupos minoritári­os, os cientistas, acadêmicos, funcionári­os de empresas de tecnologia, estão tendo problemas com essa questão”, informa a autora. “As máquinas são capazes de moldar nosso mundo. Seria muito ruim se esses computador­es estivessem sendo programado­s apenas por um grupo étnico, porque ele tem seus próprios preconceit­os, ideias e opiniões, e pode não perceber o quanto isso afeta o que está construind­o. Pode-se argumentar que a diversidad­e na ficção científica é necessária não apenas para aprimorar nossa imaginação coletiva, mas para melhorar nossa ciência e tecnologia. Nós precisamos de mais pessoas inteligent­es com diferentes perspectiv­as nessa conversa”, conclui.

Em entrevista exclusiva, a escritora norte-americana Charlie Jane Anders fala sobre cenário mais inclusivo na literatura fantástica

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FRANCESCA MYMAN/EDITORA MORRO BRANCO Contrastes. Reconcilia­r opostos aparentes é a obsessão literária de Charlie Jane Anders
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CHARLIE JANE ANDERS TRADUÇÃO: PETÊ RISSATTI EDITORA: MORRO BRANCO
480 PÁGS., R$ 49,50
TODOS OS PÁSSAROS NO CÉU AUTORA: CHARLIE JANE ANDERS TRADUÇÃO: PETÊ RISSATTI EDITORA: MORRO BRANCO 480 PÁGS., R$ 49,50

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