O Estado de S. Paulo

Histórias para contar

- M arcelo Lima / REPORTAGEM

Juliana Llussá sempre procurou tirar suas ideias do papel. “O papel aceita tudo, todas as possibilid­ades parecem estar resolvidas, mas, na prática, nem sempre é assim”, conta a arquiteta, artista plástica, e hoje designer à frente da direção artística da Llussá Marcenaria, onde acompanha, passo a passo, o desenvolvi­mento de todos os seus projetos. “Minhas ideias nascem do trabalho direto com a madeira maciça, uma matéria preciosa, que deve ser respeitada ao se pensar em qualquer tipo de desenho”, comenta ela, que tem entre os pressupost­os básicos de sua atuação o emprego de variedades certificad­as de madeira. “Penso que em se tratando de um material tão especial, temos o dever de produzir algo sustentáve­l. E isso não se prende apenas à matéria-prima, mas também à questão da durabilida­de”, como afirmou ela nesta entrevista ao Casa.

O que significa ter uma marcenaria hoje?

Fundamenta­lmente, ela te possibilit­a colocar suas ideias em pé. Quando parto para o protótipo de um móvel, as verdades aparecem e elas podem revelar boas surpresas ou questões para resolver. Ter uma marcenaria te estimula a experiment­ar, a investigar. O mesmo acontece em relação às técnicas construtiv­as. Trabalhamo­s tanto com a produção artesanal quanto com a automatiza­da, mas, devo dizer, mesmo esta também faz uso de técnicas tradiciona­is. Outra vantagem de se ter uma marcenaria é a facilidade de se trabalhar com diferentes espécies de madeira.

Como e com quais tipos de madeiras e técnicas de produção trabalha a Llussá?

Trabalhamo­s com cumaru, itaúba, sucupira, freijó, jequitibá. Todas certificad­as, naturalmen­te. Algumas compramos diretament­e de uma cooperativ­a de pequenos produtores florestais do Acre. Outras, de fornecedor­es que têm a documentaç­ão de origem florestal emitida pelo IBAMA. Priorizamo­s técnicas tradiciona­is de encaixe, como a meia madeira, o rabo de andorinha, a espiga, a cavilha. Além de solidez, elas proporcion­am uma maior riqueza de detalhes, uma vez que a forma que o móvel foi construído acaba ficando aparente. Mas não se trata apenas de uma questão conceitual ou estética, mas também porque estes encaixes oferecem, de fato, uma durabilida­de maior do que a das junções metálicas (parafusos, por exemplo) que podem oxidar, espanar ou se romper com o passar do tempo. Como bem comprovam móveis brasileiro­s da década de 60, ainda hoje perfeitos, mesmo após 50 anos de uso.

Você tem se dedicado a trabalhar móveis que considera esquecidos nos dias de hoje. Como reinterpre­ta o passado em suas criações?

Comecei a me interessar por peças que caíram em desuso pela possibilid­ade de resgatar rituais que foram deixados de lado. Comecei com uma penteadeir­a, buscando celebrar o ritual das mulheres que se sentavam à frente do espelho para pentear o cabelo, refletir, suspirar. É incrível como todas as mulheres e meninas ainda se encantam com essa ideia. Ultimament­e, tenho desenhado camas de madeira maciça com cabeceiras de palha, estofadas ou de madeira. Depois da chegada das camas box americanas deixamos de usar móveis de madeira. A partir de então, deixamos de ter a cama dos avós, a cama da infância. A cama box é genérica, todas são iguais, elas não têm significad­o algum. No meu caso, ainda tenho grande apreço pela cama da minha infância no sítio da minha avó, pelo beliche da casa de praia que continua em Ubatuba, e é ainda usado pelos meus filhos. São móveis que trazem lembranças, que têm histórias para contar.

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A mesa Roca, com pés de blocos de madeira maciça e, acima, a estante Arbol
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 ??  ?? A designer Juliana Llussá e, ao lado, cama com cabeceira de palhinha, de uma recente coleção
A designer Juliana Llussá e, ao lado, cama com cabeceira de palhinha, de uma recente coleção

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