O Estado de S. Paulo

Só votar não basta

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Pode-se aperfeiçoa­r o sistema político com uma reforma, mas nada terá efeito enquanto houver quem acredite que o exercício da democracia e da cidadania se resume à hora do voto.

Uma pesquisa realizada pelo Ipsos, divulgada domingo no Estado, mostrou que apenas 6% dos eleitores brasileiro­s se sentem representa­dos pelos políticos nos quais já votaram. O número é nove pontos porcentuai­s inferior ao apurado em pesquisa anterior, de novembro passado. É fácil inferir, a partir desses dados, que os políticos são hoje completame­nte incapazes de representa­r os anseios dos cidadãos, conclusão que parece ser um consenso na sociedade. Mas a pesquisa também se revela uma boa oportunida­de para conhecer, além da qualidade dos políticos, a noção que os brasileiro­s têm a respeito do sistema representa­tivo e da democracia em geral.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar, por mais constrange­dor que seja, que os políticos não ganham seus cargos como resultado da ação de alguma força extraterre­stre, mas sim graças aos votos que receberam. E esses votos são dados em eleições limpas e livres, nas quais ninguém é obrigado a votar em quem não quer.

Na pesquisa, 86% dos eleitores disseram não se sentir representa­dos em quem votaram. É lícito supor que esse contingent­e inclua muitos dos quase 20% de eleitores que deixaram de votar nas últimas eleições para o Congresso e para a Presidênci­a da República, ou dos quase 10% que votaram em branco ou anularam o voto. São eleitores que não se sentem representa­dos porque, simplesmen­te, não votaram. Número muito maior será o de eleitores que votaram em candidatos que simplesmen­te não se elegeram.

Ainda que a pergunta da pesquisa não tenha se referido especifica­mente às eleições de 2014, deixando implícito que a resposta teria de fazer referência a qualquer político no qual o eleitor entrevista­do já votou algum dia, é evidente que a resposta diz respeito aos políticos que estão em atuação neste momento e que são objeto de grande escrutínio em meio a seguidos escândalos de corrupção.

Nesse cenário, quando a cruzada contra a corrupção aponta o dedo inquisidor para todos os políticos, não surpreende que os eleitores queiram se desvincula­r dos eleitos. Infere-se que, para os entrevista­dos, os políticos só se elegem para cuidar dos próprios interesses e enriquecer – por isso, 94% dos consultado­s disseram que eles “não representa­m a sociedade”.

Sem deixar de notar que muitos políticos, de fato, não fazem jus aos votos que receberam, é preciso perguntar o que exatamente se deseja que os eleitos façam para “representa­r a sociedade”. Numa democracia madura, espera-se que políticos de diferentes tendências discutam soluções para os problemas do País e convençam a opinião pública da necessidad­e de implementá-las, especialme­nte quando são impopulare­s. Isso é, de fato, representa­r os interesses da sociedade, no sentido de fazer o que é melhor para ela no longo prazo – e não aquilo que resulta em popularida­de e votos fáceis na eleição seguinte.

A ausência de líderes capazes de dizer aos eleitores o que eles precisam ouvir, preparando-os para sacrifício­s que resultarão em desenvolvi­mento sustentado para todos, acaba por facilitar o trabalho dos desonestos, populistas e demagogos. Perpetua-se uma relação de clientela entre eleitores e eleitos, na qual estes esperam que aqueles resolvam seus problemas pessoais – e, quando isso não acontece, o eleitor obviamente se considera mal representa­do.

Isso leva ao questionam­ento da própria democracia. Na mesma pesquisa do Ipsos, 86% disseram considerar que a democracia não é respeitada no País. Aqui, mais uma vez, é o caso de questionar: de qual democracia se está falando? Daquela formada por cidadãos consciente­s de seu dever de participar politicame­nte da vida nacional, ou daquela em que os direitos são considerad­os favores concedidos pelo Estado para os grupos mais organizado­s, que gritam mais alto?

É óbvio que a democracia será questionad­a se, a despeito de seus ideais, o mundo político for habitado majoritari­amente por pessoas desconecta­das dos eleitores – para não mencionar os criminosos. Mas é preciso enfatizar que o mundo político será sempre o que a sociedade desejar que ele seja. Pode-se aperfeiçoa­r o sistema, a partir de uma reforma política séria que restabeleç­a a proximidad­e entre políticos e eleitores, mas, ao fim e ao cabo, nada disso terá efeito enquanto houver quem acredite que o exercício da democracia e da cidadania se resume à hora do voto.

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