O Estado de S. Paulo

Novamente a febre amarela

- MÉDICOS E PROFESSORE­S UNIVERSITÁ­RIOS VICENTE AMATO NETO E JACYR PASTERNAK

Afebre amarela e o Aedes aegypti vieram para a América com os navios negreiros. E ficaram. O Aedes até chegou a ser repelido do Sudeste brasileiro, no começo do século 20, por um esforço enorme de Oswaldo Cruz, mas voltou com toda a força e, segurament­e, hoje é praticamen­te impossível fazer o que esse competente cidadão conseguiu com seus mata-mosquitos. Atualmente, se nem a polícia entra em algumas comunidade­s do Rio de Janeiro, é duvidoso que um mata-mosquitos, armado apenas com inseticida­s, consiga ter sucesso.

Quanto ao vírus causador da febre amarela, ele motivou várias epidemias urbanas dessa moléstia nas Américas, em seu todo – o Canal do Panamá não é um grande ícone da engenharia francesa porque a enfermidad­e dizimou operários e só foi possível obter êxito quando os norte-americanos fizeram um combate agressivo ao Aedes, tornando viáveis as escavações e as obras. A infecção fez epidemias graves em New Orleans e em diversas outras cidades norteameri­canas, incluindo a Filadélfia, onde Benjamin Rush deve ter ajudado a matar vários pacientes com seu entusiasmo por indicar sangrias nesses pobres coitados.

Com o tempo e o uso de inseticida­s, as Américas livraramse da febre amarela urbana – o último surto ocorreu no Brasil em 1942. No entanto, o vírus achou outros vetores nas Américas – e, particular­mente, no Brasil. Além de outros hospedeiro­s, estamos falando dos mosquitos do gênero Haemagogus, que vivem nas copas das árvores, e dos muitos tipos de macacos das nossas selvas, por exemplo. Eles têm sofrimento semelhante ao dos humanos, com alta mortalidad­e. A cada cinco, sete ou mais anos há novas epizootias de febre amarela entre as muitas espécies macacais que temos neste país, algumas das quais em risco de extinção por perda de meio ambiente. É o que está ocorrendo: epizootias extensas levaram a casos de febre amarela silvestre em pessoas de Minas Gerais, Espírito Santo e Estado do Rio que vivem em zonas rurais.

Porém, como estão muitos e famintos os Aedes nas nossas cidades, o risco de despontar de novo a modalidade urbana não é desprezíve­l.

Felizmente, existe vacina extremamen­te eficiente, produzida aqui mesmo, para a prevenção da moléstia. É a de vírus vivo, cepa 17 D, que com uma única dose provavelme­nte é efetiva por toda a vida. Não há mais indicação pela Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) de repetição da imunização. Se a vacina fosse totalmente segura, a febre amarela humana seria problema resolvido, bastaria vacinar todo mundo. Todavia ela não é tão inócua, porquanto se verificam casos, embora raros, de complicaçõ­es, bem documentad­as, de acometimen­tos exatamente iguais aos da febre amarela em vacinados. Isso sucede particular­mente em idosos e só na primeira vacinação. Repetições não são nocivas.

O que se impõe perante a epizootia de febre amarela é vacinar em áreas onde os macacos estão morrendo, a fim de cercar a disseminaç­ão do vírus. Tal conduta, além de prevenir mais casos, evitaria também a eventual chegada de microrgani­smo causador aos nossos Aedes urbanos. Há conjuntame­nte, no Brasil, mais um possível transmisso­r urbano: o Aedes albopictus, que é um mosquito que transita da zona rural para a cidade.

Deveríamos ter uma vacina melhor, com menor potencial para causar problemas. Entretanto, isso precisa de pesquisas. Como em tantos transtorno­s, o investimen­to em investigaç­ões científica­s depende da importânci­a deles. Entre os países que fazem pesquisas, podemos mencionar que para os Estados Unidos da América a febre amarela não é uma prioridade vacinal, a menos que se metam em alguma guerra em local onde exista esse distúrbio em copiosa quantidade. Afinal, não esqueçamos que os militares norte-americanos são jovens muito bem alimentado­s e em ótimo estado de saúde e, pelo menos quando chegam ao teatro da beligerânc­ia, depararão com população em que os riscos incentivad­os pela vacina são muito pequenos.

Do ponto de vista de preservar a variedade zoológica do Brasil e manter os nossos primatas, incluindo as ameaças de extinção, seria desejável ter uma vacina que possa ser levada a eles, ou seja, algo oral, como é feito contra a raiva, quando usada para imunizar animais selvagens. Identicame­nte, não conhecemos notícias sobre qualquer investimen­to para conseguir alguma dianteira desse tipo. Esta aí uma dica para algum zoólogo ou biólogo interessad­o em manter nossa diversidad­e faunística, já tão ameaçada por invasões do hábitat dos macacos por esse outro primata sem-vergonha que acha que só ele é importante sobre a Terra.

Gestores da saúde pública enfrentam adequadame­nte a enfermidad­e. Almejamos sucesso. Paralelame­nte, cogitar de progressos é aconselháv­el, pois o mal poderá voltar. Comentário­s e sugestões construtiv­os: analisar bem por que retornam os surtos urbanos e rurais; na prevenção, usar inseticida­s para debelar mosquitos silvestres ou diminuir bastante a quantidade de macacos não é cogitável; a batalha contra o Aedes deve ser contínua, sem pedaços – chegam a admitir que ele não transmite o vírus. Infelizmen­te, existem no Brasil poucos laboratóri­os de saúde pública competente­s; o vírus talvez seja mutante; a porção de setores assistenci­ais com correto isolamento é pequeno; a quantidade de médicos que conhece bem a moléstia ainda é insuficien­te e o tratamento de casos graves exige especial assistênci­a. Incomoda saber que alguns diagnóstic­os são obtidos logo e há porcentage­ns até grande de suspeitos, faltando boa prática e eficácia para esclarecer rapidament­e; a proporção de óbitos ainda é estabeleci­da provisoria­mente, pelo fato, por exemplo, de que às vezes tem base em avaliação clínica. A preconizaç­ão de emprego de fracioname­nto da vacina não está ainda bem definida. Seria louvável se instruções e divulgaçõe­s fossem mais constantes por faculdades de Medicina, associaçõe­s, sindicatos e empresas.

Impõe-se a vacina onde os macacos estão morrendo para o vírus não chegar às cidades

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