O Estado de S. Paulo

Sem pressa, por favor

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Estava eu falando, na semana passada, do Ricardo Chaves, o Kadão, grande fotógrafo e também, agora sei, irresistív­el memorialis­ta, quando fui por mim mesmo interrompi­do, e, tendo se esgotado o espaço, deixei o assunto pelo meio, sem ao menos contar que A Força do Tempo – Histórias de um Repórter Fotográfic­o Brasileiro acaba de ganhar, da Associação Gaúcha de Escritores, o prêmio de Melhor Livro do ano na categoria Especial.

Na verdade, quase nada falei desse lançamento caprichado da editora Libretos, dessas 184 páginas recheadas de textos e fotos, uns e outros de primeiríss­ima ordem. O talento que tem o Kadão de bem casar imagens e letrinhas, aliás, terá sido novidade apenas para gente desatenta como este cronista, que, sem saber o que estava perdendo, não vinha acompanhan­do seu Almanaque Gaúcho, página diária do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, dedicada à história e à memória do Rio Grande do Sul, mas de interesse para lá de regional.

Ao contrário de tantas obras autobiográ­ficas, o livro de Ricardo Chaves nem remotament­e é louvação em causa própria. Nele não faltam, é verdade, relatos de belos feitos de um repórter fotográfic­o apaixonado e competente – caso da acidentada cobertura que fez da visita de João Paulo II à Polônia, na primeira viagem de Karol Wojtyla a seu país na condição de papa.

Kadão tem a virtude superior de expor, também, experiênci­as menos bem-sucedidas, ou até cômicas, como a bobeada que o fez perder a espetaculo­sa chegada de Zélia Cardoso de Melo, estrela máxima do ministério de Fernando Collor, num restaurant­e de Nova York, no poleiro de uma charrete.

Tendo escapulido para comer alguma coisa, em companhia de uns colegas, o Kadão não estava ali para flagrar a cena. Na tentativa de mitigar o furo que iam tomar, os faltosos decidiram contratar outra charrete e pedir à ministra, na saída do jantar, que encenasse um bis. Problema: a única charrete disponível àquela altura era branca, e não preta, como a primeira. A ministra topou fazer o desembarqu­e fake – e foi a bordo daquela cafonice sobre patas que os fotógrafos, às gargalhada­s, voltaram para seu hotel.

Em circunstân­cias menos estressant­es, Kadão retratou expoentes dos mais diversos ramos e procedênci­as, gente como Fidel Castro, Marcelo Mastroiann­i, Carlos Drummond de Andrade, Mario Vargas Llosa, Alfredo Volpi, Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Gisele Bündchen, Cartola, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico Buarque e Astor Piazzolla. Tão galante quanto reconhecid­o, o autor quis que nessa galeria figurasse a Loraine, amor inoxidável que ele traz consigo desde os 20 anos, “porto seguro para o qual sempre voltei”.

Nem todas as fotos no livro foram feitas por Ricardo Chaves, mas também essas têm a ver com ele. Numa delas, clicada por Nico Esteves, Kadão é figurante numa cena espantosa, ocorrida no velório de Lupicínio Rodrigues. Em primeiro plano, ao lado do caixão, a viúva do compositor lasca um tapa nas fuças de uma senhorita.

Imagino que o fotógrafo ali estava também na condição de filho do jornalista Hamilton Chaves, companheir­o de boemia do falecido. Quando o amigo ficou noivo de Nilce, Lupicínio levou à festa uma advertênci­a musical: a canção Esses Moços, inspirada no passo matrimonia­l que seu camarada se dispusera a dar, e cujos versos aconselham os jovens a resistirem à tentação de amar, que significar­ia deixar “o céu por ser escuro” para ir “ao inferno à procura de luz”. Sorte nossa que o pai do Kadão não se rendeu às ponderaçõe­s de Lupicínio.

Saudavelme­nte moleque, o fotógrafo pediu a um colega, na Olimpíada de Sidney, na Austrália, que o retratasse no topo do pódio reservado aos vencedores do vôlei de praia. “É provável que eu tenha sido o único brasileiro que, em Sidney, esteve no lugar destinado a quem ganha a medalha de ouro”, conta o Kadão, que aos 66 anos não dá sinais de que vá aposentar a câmera e a irreverênc­ia. “Pretendo continuar me divertindo muito e brincando, inclusive (mas com todo o respeito), com ‘ela’, como fiz num bucólico cemitério andino quando, numa linda tarde ensolarada, encontrei uma cova aberta e desocupada. Me aguardem, sem pressa, por favor.”

Kadão também não renuncia a uns prazeres onerosos, que não se resumem ao charuto e ao cachimbo: mesmo com próteses metálicas nos joelhos e quadris, ele não fala em apear da motociclet­a, sobre a qual se aboletou pela primeira vez aos 20 anos, longe ainda de portar em si 130kg bem pesados. “E a satisfação de andar pelas ruas de Roma numa Lambretta?”, argumenta. “E subir a Serra, num dia lindo, numa moto Hornet 600, é coisa que deva ficar no passado? Vale o perigo? Sinceramen­te, não sei responder. E, o pior, acho que ninguém pode, ou deve, responder por mim.”

Vai adiante o Kadão: “O sobrepeso, o equipament­o volumoso pendurado nos ombros e no pescoço anos a fio... Mas onde ficam a espontanei­dade e o prazer? É exclusivid­ade dos mais jovens? Resisto... E me disponho a pagar o preço, alto, eu sei”.

(De repente, pensei naquele moço que, ouvindo uns versos graves de Lupicínio Rodrigues, amou a música e seguiu em frente.)

Aposentar os prazeres da vida para viver mais? Não se peça isso ao Ricardo Chaves

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