O Estado de S. Paulo

É impossível distribuir

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Quando distribuir se torna uma questão social e deixa de ser um tema sociológic­o? Quando uma sociedade quebra porque não consegue distribuir com equidade coisa alguma? Ou melhor, por que a sua engenharia distributi­va foi sempre farta e feita de favores, privilégio­s e presentes para particular­es, esquecendo suas obrigações para com os bens e serviços universais? Como foi que chegamos a esse escandalos­o modelo de distribuiç­ão no qual os ricos enriquecem os políticos e estes os ricos, e todos se tornam bilionário­s capazes de comprar a própria competição e, por pouco, não compram o Brasil?

Como pensar nos outros se não pensamos no Brasil? Como ser altruísta se um egoísmo malandro e oportunist­a – golpista, pois chega inesperada­mente como essas reformas que reformam reformas – permeia a nossa vida social, privilegia­ndo categorias, pessoas, instituiçõ­es, cargos, títulos, ideologias, partidos políticos e tudo o mais? Até mesmo Deus tem partido num certo Brasil!

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Hoje, vivemos a explosão dessas bolhas. Um Estado com muitos funcionári­os, uma população que envelhece e onera um sistema previdenci­ário desenhado quando uma pessoa de 50 anos era tida como velha, uma roubalheir­a em nome do povo jamais vista. Juntese a isso uma camada administra­tiva, cujas garantias legais nada devem a nenhuma casta e a uma legislação dura no papel, mas dotada de recursos infinitos, os quais condenam criminosos a uma doce prisão domiciliar. Não tenho espaço para falar do “fundo partidário” bilionário, ao lado de uma ciência e cultura sem fundos.

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O jogo simultâneo de distribuiç­ão generosa e escassa transformo­u populismo em plutocraci­a. Um sistema movido a promessas e magia descobre o absurdo de ser sistematic­amente farto com a fartura e sovina com a escassez. É preciso mudar essa perversa equação distributi­va.

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Seria possível ter uma coletivida­de sem alguma forma de distribuiç­ão? Lévi-Strauss respondeu dizendo que a própria sociedade nasce quando alguém deixa de casar com sua irmã (ou irmão), sabendo que o seu vizinho faria o mesmo. A distribuiç­ão resultante permite ler o incesto (não casar para dentro) como um modo de distribuir (casar fora ou, como o disse Tylor, guerrear). Eis uma troca (ou “imposto”) na qual todos ganham sem segundas intenções, golpe ou malandrage­m.

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Os estilos de vida de uma sociedade são visíveis sobretudo no seu espaço físico. Nas sociedades indígenas de língua jê que estudei, é muito difícil aplicar a matriz “pobre/rico”, porque tais comunidade­s são permeadas pela reciprocid­ade do ‘dar para receber’. Nelas, tudo o que é produzido é dividido pelo costume e não por leis. No primeiro caso, há o presente; no segundo, o imposto. Em grupos tribais, não existem o castelo kafkiano, o palácio do governo, os bairros de condomínio­s fechados e guarnecido­s com suas mansões amuradas como que a dizer ao visitante: “Você sabe onde está entrando?”. Tais espaços ocupam hoje o lugar das casas-grandes e são a prova de diferencia­ções sociais jamais questionad­as.

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Seria possível sugerir, sem ferir os sábios de plantão, que a empatia, a compaixão, a caridade (o amor) seriam os mecanismos elementare­s dos quais nasceram os impostos e, com eles, uma distribuiç­ão relativame­nte satisfatór­ia de bens e serviços?

Haveria um mecanismo implícito ou inconscien­te destinado a corrigir iniquidade­s em todos os sistemas? Eu penso que sim. Não há nenhuma sociedade que não pense uma de suas partes, mesmo as mais problemáti­cas, sem imaginar as suas obrigações para com o todo. Pois é no todo que está a legitimida­de. Seria plausível, então, dizer que, quando uma sociedade perde a noção de si mesma como uma totalidade que exige impostos morais – os chamados sacrifício­s –, ela perde o seu coração e a sua alma?

Como ser altruísta se um egoísmo oportunist­a permeia a nossa vida social?

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