O Estado de S. Paulo

A afronta ao teto salarial

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Figura jurídica do “abate-teto” é fundamenta­l para enquadrar castas que não aceitam controle.

No mesmo dia em que o governo anunciou que tomará providênci­as jurídicas para exigir que o teto salarial do funcionali­smo público estabeleci­do pela Constituiç­ão – hoje de R$ 33,7 mil – seja cumprido pelos Três Poderes, o presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) enviou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um ofício explicando por que autorizou o pagamento de valores entre R$ 100 mil e R$ 503,9 mil a 85 juízes, em julho.

O denominado­r comum dos dois acontecime­ntos é o rombo fiscal de quase R$ 160 bilhões previsto para 2017. Como o artigo 37 da Constituiç­ão é taxativo ao determinar que “a remuneraçã­o e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administra­ção direta e autárquica e funcional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios e dos detentores de mandato eletivo não poderão exceder o subsídio mensal em espécie dos ministros do Supremo Tribunal Federal”, o governo quer acabar com os expediente­s que têm sido utilizados em diversos setores da administra­ção pública para burlar o teto.

No Judiciário e no Ministério Público, esses expediente­s – mais conhecidos como pendurical­hos – envolvem o pagamento de dezenas de benefícios pecuniário­s, como auxíliomor­adia, auxílio-creche e auxílio-transporte. No caso dos 85 juízes do TJMT, as justificat­ivas para os fantástico­s pagamentos foram que eles usam carro próprio para trabalhar, têm direito a adicional de insalubrid­ade e atuaram simultanea­mente em diferentes entrâncias. Esses pagamentos são previstos pela Lei Orgânica da Magistratu­ra e por uma lei estadual de Mato Grosso e teriam sido autorizado­s pelo CNJ, disse o presidente do TJMT, desembarga­dor Rui Ribeiro, no ofício que enviou ao órgão. Tudo legal, como se vê, mas de nenhuma moralidade. O desembarga­dor também afirmou que, “por juízo de conhecimen­to e oportunida­de”, decidiu pagar aos 85 juízes todos os valores de uma só vez e divulgar a decisão no Portal da Transparên­cia, para “propiciar o bem-vindo controle social”. Assim que a divulgação foi feita, o corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, negou que o CNJ tenha autorizado os pagamentos.

Sempre agindo em causa própria, há muito os juízes classifica­m pagamentos como esses como “verbas indenizató­rias”, o que lhes permite afirmar que elas não são salários, motivo pelo qual não podem ser levadas em conta no cálculo do teto e geralmente ficam isentos de impostos. Graças a essas decisões fantasiosa­s, juízes e procurador­es desrespeit­am a Constituiç­ão que prometeram cumprir. No Ministério Público de São Paulo, 91% de seus membros recebiam entre o teto e o dobro em 2015 e 6% ganhavam mais do que o dobro. No Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem 2 mil juízes de 1.º grau e 363 desembarga­dores, a média salarial, em 2015, era de R$ 45,9 mil – bem acima do teto. Os números constam da tese de doutorado defendida pela pesquisado­ra Luciana Cardoso na Fundação Getúlio Vargas. Ela reproduz as declaraçõe­s do presidente da Corte naquele ano, reconhecen­do que seus colegas de toga afrontam o teto constituci­onal, uma vez que os pendurical­hos são “disfarce para aumentar um pouquinho seus salários, o que permite que não tenham depressão, síndrome do pânico e AVCs”.

Na tentativa de regulament­ar o teto, o governo quer introduzir no Legislativ­o, no Judiciário e no Ministério Público a figura jurídica do “abate-teto”. Trata-se de dispositiv­o utilizado na programaçã­o das folhas de pagamento por algumas instâncias do Executivo que cancela automatica­mente nos holerites dos servidores qualquer remuneraçã­o que exceda o limite salarial estabeleci­do pela Constituiç­ão. Ainda que imposição dessa medida deva sofrer fortes resistênci­as, ela é fundamenta­l para sanear as finanças públicas e enquadrar as castas burocrátic­as que não aceitam qualquer tipo de controle. Se essa medida já estivesse em vigor na Justiça, os 85 juízes de Mato Grosso não receberiam vultosos valores que a Constituiç­ão não permite.

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