O Estado de S. Paulo

Deformaçõe­s e reforma política

- ROBERTO MACEDO ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR

Na última terça-feira, a comissão da Câmara dos Deputados que trata do que se convencion­ou chamar de reforma política aprovou Proposta de Emenda Constituci­onal (PEC). Esta, como principais medidas, cria o financiame­nto público de campanhas eleitorais, adota o voto distrital misto a partir de 2022 para escolha de deputados federais, estaduais e vereadores, e também o sistema eleitoral conhecido como “distritão” para a eleição dos mesmos em 2018 (deputados em geral) e 2020 (vereadores). Este artigo analisa essas propostas.

Quanto ao financiame­nto de campanhas, a referida comissão optou por criar o financiame­nto público, que, nos termos da referida PEC, será custeado principalm­ente por “dotações consignada­s em lei orçamentár­ia em anos eleitorais, correspond­entes a 0,5% da receita corrente líquida apurada no período de 12 meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei”.

Estima-se que no ano eleitoral de 2018 esse valor correspond­eria aproximada­mente à expressiva importânci­a de R$ 3,6 bilhões. É uma conta pesada que seria pendurada nas quase falimentar­es finanças da União, onde seria provavelme­nte custeada por mais endividame­nto, cujo ônus recairá sobre as gerações atuais e futuras de vítimas da extorsão tributária governamen­tal.

Mesmo se o governo tivesse dinheiro, esse financiame­nto público não caberia numa autêntica reforma política, pois seria mais uma deformação. Os políticos deveriam reduzir os custos das campanhas e buscar recursos de pessoas físicas. Como, aliás, já fizeram nas eleições municipais de 2016. É difícil, mas é preciso criar o hábito dessas doações. Isso seria facilitado se os eleitos efetivamen­te começassem a mostrar serviço público e reduzissem o enorme custo do Poder Legislativ­o no âmbito da União, das unidades federativa­s e dos municípios.

Se esse financiame­nto passar na votação em plenário na Câmara e no Senado, sua extinção se tornaria muito difícil. Uma das minhas avós dizia que dar osso a um cachorro é fácil, tirá-lo é muito difícil. Não vejo os deputados federais e senadores como seres caninos, mas os humanos têm muitos traços do comportame­nto visto no reino animal. Aliás, argumento como este da minha avó foi abordado cientifica­mente pelo psicólogo Daniel Kahneman, premiado com o Nobel de Economia ao apontar que o ser humano lamenta muito mais a perda relativame­nte à satisfação que deriva de ganhos de igual valor. Ou seja, perder o mesmo osso traz mais tristeza que a alegria de recebê-lo.

Outra deformação seria o “distritão”. Haveria um para cada unidade federativa, no caso de deputados; e para cada cidade, no caso de vereadores. Nele seriam eleitos os candidatos mais votados, independen­temente dos votos obtidos por seu partido. Já conhecidos do eleitorado e dominando máquinas partidária­s, os atuais deputados e vereadores reduziriam o número de candidatos, sendo seu objetivo único a sua reeleição, que rima com “distritão”.

Segundo O Globo (10/8), ele é adotado em apenas quatro países: Jordânia, Afeganistã­o, Vanuatu e Pitcairn. Na internet, vi que este último é território ultramarin­o britânico, com bandeira e administra­ção próprias, mas que no seu censo de 2010 tinha apenas 45 habitantes. Mesmo consideran­do-o como um país, esses quatro são apenas 2% do total de cerca de 200 países do mundo. Vamos importar o que 98% não adotam? É importação de lixo.

Quem defende o “distritão” argumenta que, ao contrário do sistema proporcion­al hoje em vigor, ele evitaria que candidatos muito pouco votados fossem eleitos “puxados” por “campeões de votos”, como os eleitos pelo chamado efeito Tiririca. Outros argumentam que seria efetivamen­te mais democrátic­o, ao eleger os mais votados.

Mas democracia não se resume nisso. Tal sistema também envolveria muitos candidatos, dificultan­do a escolha, teria campanhas de alto custo individual, desenvolvi­das por todo o “distritão”, muitos votos perdidos, outorgados a não eleitos, e tampouco permitiria o estreitame­nto do contato permanente entre eleitores e eleitos. Isso pelas dificuldad­es logísticas no relacionam­ento dos eleitos com eleitores dispersos por todo o “distritão”.

O voto distrital puro resolve estes e outros problemas, em particular outorgando maior representa­tividade aos que são eleitos como se fosse numa eleição direta para o Executivo. O Estado de São Paulo, por exemplo, seria dividido em 70 distritos, cada um escolhendo seu deputado federal entre um pequeno número de candidatos, um de cada partido. Assim, comparando esses poucos candidatos, o eleitor seria mais seletivo na escolha. E o eleito representa­ria todos os eleitores do distrito, e não apenas quem votou nele, sendo assim mais representa­tivo. Ademais, os eleitores teriam mais condições de cobrar desempenho do eleito e este, de prestar conta do que fez como deputado.

No distrital misto, o número de distritos cairia para 35, sendo igual número de deputados escolhidos pelo voto direto e os demais 35 mediante voto em listas de candidatos, uma de cada partido.

Assim, o voto distrital misto é a única das medidas citadas que merece o nome de reforma, porque aprimorari­a enormement­e a nossa frágil democracia, embora minha preferênci­a seja pelo puro. Mas seria adiado para 2022, por conveniênc­ia de quem hoje já tem mandato e também quer tempo para se preparar para este novo jogo eleitoral. Assim, o “distritão” seria uma transição para o distrital misto.

Se de fato ela ocorrer, eu até admitiria a inconveniê­ncia do “distritão” como um custo justificad­o pelos grandes benefícios advindos do sistema distrital. Mas há o risco de que os eleitos em 2018 não queiram largar o osso do “distritão” e venham a revogar o distrital misto. Seria, então, o caso de chamá-los de efetivamen­te caninos.

O voto distrital misto é a única medida de fato reformador­a, capaz de aprimorar a democracia

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