O Estado de S. Paulo

Charlottes­ville à brasileira

- TWITTER: @ZEROTOLEDO BLOGS.ESTADAO.COM.BR/VOX-PUBLICA/ JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS

Neonazista­s desfilando orgulhosam­ente em Charlottes­ville, a cidade de Thomas Jefferson, o autor da inspirador­a declaração de independên­cia dos EUA, foi chocante. Ver um deles matando covardemen­te quem se levanta contra o racismo, em atentado para inspirar terror, fez do escândalo tragédia e ameaça. Mas o presidente relativiza­r tudo isso ao equiparar a vítima ao algoz (duas vezes) dá tentação de invocar Drogon e gritar “dracarys”.

Tentação passageira e irrealizáv­el, decerto. Dragões voadores e incendiári­os só aparecem nas noites de domingo e, ainda assim, confinados às telas para onde escaparam das páginas de ficção.

A “alt-right” e seu inspirador com cabelos à la Targaryen, porém, estão aí todo dia, toda hora, em todo lugar. Não são ficcionais, mas evocações fantasmagó­ricas de um passado que se esperava morto e enterrado. Trump está ajudando a exumá-lo.

No Brasil, fantasmas políticos não são levados a sério – como Trump não era nos EUA. Quando só apareciam segurando um cartaz em uma manifestaç­ão ou fazendo um comentário preconceit­uoso em uma mídia social, eram tachados de malucos excêntrico­s. Quando se multiplica­ram e passaram a ter validade estatístic­a, continuara­m a ser considerad­os exotismo e motivo de piada.

Mesmo depois de elegerem bancada no Congresso, de se tornarem arroz de festa em protestos e de comentarem todo post de Facebook que trate de política, os saudosos da ditadura e do obscuranti­smo continuam sendo tratados como café com leite. O Brasil parece se julgar imunizado ao que aconteceu meio século atrás. Esquece-se que a maioria do eleitorado de hoje não tomou essa vacina. Não viveu a doença nem foi educada sobre ela.

Passado o perigo imediato, os humanos baixam a guarda. A recidiva da Aids entre os jovens que não vivenciara­m a epidemia dos anos 80 e 90 ou a ressurgênc­ia periódica de doenças contagiosa­s que dependem de vetores erradicáve­is são lembranças constantes de como a memória é menos perene que a ameaça.

Os sintomas, entretanto, estão aí para quem quiser conferi-los. Organizaçõ­es políticas que execram a política a pretexto de combater a corrupção e o esquerdism­o? Check. Sites de notícias falsas que conseguem viralizar com frequência nas mídias sociais? Check. Financiado­res dispostos a bancá-los? Check. Militância organizada e capaz de ir às ruas? Check. Aventureir­os dispostos a surfar essa onda a qualquer preço? Check.

Se o vírus existe e está incubado, quais são as condições de saúde do organismo social para resistir a ele? As piores. As defesas imunológic­as representa­das pelas instituiçõ­es jamais estiveram tão baixas. As taxas de confiança no Congresso, na Presidênci­a da República e nos partidos nunca foram menores. Para completar, a Justiça entrou na mira da opinião pública.

Tudo isso em meio à maior recessão econômica experiment­ada em duas ou três gerações – com desemprego recorde, extinção progressiv­a dos melhores empregos formais, desocupaçã­o especialme­nte alta entre jovens, mesmo entre quem fez faculdade. Sem contar o déficit público explosivo a generaliza­r os cortes de gastos sociais que serviriam de proteção para o tombo.

O que falta, então, para desencadea­r um processo equivalent­e ao que aconteceu nos EUA e provocou a assunção ao poder de um “mad king” de cabeleira descolorid­a e esvoaçante? O catalisado­r.

Em comparação a Enéas, Jair Bolsonaro tem capacidade eleitoral ampliada. Mas o quarto do eleitorado que admite votar nele o faz menos por entusiasmo com a figura do que pelas ideias que simboliza. Por isso, ele se arrisca a perder esses votos se outro conseguir personific­ar o Trump brasileiro. Candidatos não faltam.

No Brasil, os saudosos da ditadura continuam sendo tratados como café com leite

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