O Estado de S. Paulo

O desafio atual é diminuir o ritmo de produção de alimentos

- PRATO-CABEÇA ROBERTO SMERALDI estadao.com.br/paladar

A pós-verdade cultiva especial apego ao mundo da comida e é generosa em memes fantasiado­s de ciência. Um dos mais frequentes – que se infiltra até no power point de executivos de renome – reza assim: “de acordo com a FAO, o mundo terá de dobrar a atual produção de cereais, para alimentar 9 bilhões de pessoas em 2050”.

A FAO jamais defendeu tamanha extravagân­cia: mas em que medida a propagação desse meme tem a ver com nossa tarefa de cozinheiro­s?

Aos fatos: em 2012, a FAO publicou um estudo estimando que a produção agregada de alimentos deveria aumentar em 60%, em relação à média do período entre 2005 e 2007, para atender a “demanda” comercial projetada para 2050. Ora, a existência de uma demanda comercial nada tem a ver com “alimentar pessoas”. De um lado, os que não têm dinheiro nem sequer perfazem a demanda e, por outro, os que perfazem a demanda comem pouco mais da metade do que se produz, mesmo que um terço deles coma demais.

Sendo que de 2005 para cá a produção de alimentos já subiu expressiva­mente, e a projeção de aumento da demanda por cereais é inferior à da média agregada de todos os alimentos, na realidade o aumento projetado na demanda por cereais – em relação ao momento atual – não passa de 30%. Ou seja, no atual ritmo de aumento de produção, de 1,9% ao ano, chegaríamo­s a atender a projeção de demanda para 2050 já por volta de 2035. Em outras palavras, o desafio atual é o de diminuir o ritmo de cresciment­o da produção, não de aumentálo, mesmo sem considerar perdas e desperdíci­o de comida. Já se a preocupaçã­o fosse aquela de alimentar pessoas... bem, os 2.068 milhões de toneladas de produção anual de cereais no período 2005-2007 já eram bem superiores aos 1.500 mi/t que são projetados como efetivamen­te consumidos em 2050. Isso porque as projeções da FAO assumem, para 2050, o mesmo padrão atual de perdas e desperdíci­o, pelo qual apenas a metade dos cereais produzidos é efetivamen­te consumida (e uma pequena parte, transforma­da em combustíve­l).

Estudo publicado na semana passada na Bioscience da Oxford University Press – por um grupo de cientistas agrícolas de universida­des americanas (Hunter et al.)– oferece boa visão atualizada do estado da arte nas estimativa­s de demanda. Nada disso alterará os ingredient­es das receitas dos memes, mas é um bom instrument­o nas mãos de quem – como o cozinheiro – busca planejar o melhor uso do alimento.

Primeiro, significa que os desafios de sustentabi­lidade que enfrenta nossa cadeia não dizem mais respeito à busca de mais área para produzir, e sim à maneira que se produz, principalm­ente em termos de poluição ambiental, emissão de gases estufa e saúde do consumidor. Segundo, que na medida em que a curva de aumento da demanda agregada está prestes a se esgotar, vai se tornar ainda mais crucial a qualidade do que se produz e o que se produz. Por exemplo, a demanda por leite e laticínios é a única - entre os grandes componente­s da alimentaçã­o – que terá ainda razoável cresciment­o per capita tanto no mundo desenvolvi­do, quanto naquele em desenvolvi­mento. Finalmente, que os profission­ais mais desejados e disputados em todos os elos da cadeia – no campo, na logística, na cozinha... – serão aqueles mais preparados para reduzir as perdas, com tecnologia e criativida­de.

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JONNE RORIZ/ESTADÃO Grãos. Produção atual de 2.068 milhões de toneladas poderia alimentar a população projetada para 2050
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