O Estado de S. Paulo

De leis e salsichas

- •✱ JOSÉ ROBERTO BATOCHIO ADVOGADO CRIMINALIS­TA, FOI DEPUTADO FEDERAL PELO PDT-SP E PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB). E-MAIL: JRBATOCHIO@BATOCHIO.COM.BR

Opríncipe Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhause­n (18151898) foi um dos estadistas mais importante­s do século 19, célebre por sua mão de ferro na unificação da Alemanha e, também, em patamar mais popular, uma língua ferina a que se credita a frase “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. Na verdade, o autor dessa diatribe foi o poeta americano John Godfrey Saxe (1816-1887), cabendo a Bismarck, no entanto, a comprovada autoria de um apotegma pertinente não menos corrosivo: “Com leis ruins e funcionári­os bons ainda é possível governar. Mas com funcionári­os ruins as melhores leis não servem para nada”.

A dicotomia de Bismarck, em que funcionári­o equivale a juiz, ressalve-se, não é a regra no Brasil, embora tenhamos, com frequência assustador­a, a coexistênc­ia das ruindades. Sem querer cometer injustiça com as salsichas, que têm ao menos a fiscalizaç­ão da Vigilância Sanitária, leis são promulgada­s ao arrepio da lógica e da sabedoria da ciência do Direito e manejadas a bel-prazer pelos que por primeiro deveriam observá-las.

Exemplo eloquente desse descompass­o encontra-se na Lei n.º 12.850, de 2/8/2013, que definiu a organizaçã­o criminosa, fenômeno até então em estado de anomia no Brasil. Oportuna iniciativa em tempos de ação tentacular do crime organizado. Antes, invocava-se para punir tal modalidade a Convenção de Palermo – uma esdruxular­ia jurídica sem chancela congressua­l, finalmente rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A lei em apreço também disciplino­u a colaboraçã­o premiada, a ação controlada e a infiltraçã­o de agentes, que se banalizara­m como as salsichas.

O mais invocado de seus preceitos tem sido, no entanto, o § 1.º do artigo 2.º, que tipifica o crime da moda: o apelidado “obstrução de Justiça”. Define como criminoso, sujeito a reclusão de três a oito anos e multa, “quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigaç­ão de infração penal que envolva organizaçã­o criminosa”. Considerad­o isoladamen­te, o dispositiv­o se exibe materialme­nte inconstitu­cional porque afronta o princípio da legalidade/taxativida­de (qual é exatamente a conduta caracteriz­adora do delito?), da proporcion­alidade (a mesma pena para o bandoleiro e para quem apenas embaraçou a investigaç­ão?) e do direito de não se autoincrim­inar (nemo tenetur se detegere). Sistemicam­ente considerad­o, revela-se de um reducionis­mo abissal.

Primeirame­nte, convém procurar entender o que vem a ser “investigaç­ão de infração penal”. É o inquérito, o processo, uma simples sindicânci­a, medida preparatór­ia, ou mesmo notícias de jornal, manancial inexauríve­l para nossos investigad­ores? No conceito aparente, rapidament­e apropriado por policiais, promotores e juízes, a investigaç­ão oficial constitui única e exclusivam­ente os atos que eles praticam no feito com vistas a confirmar suas “convicções” quanto à existência material da infração e de que o suspeito é, sim, seu autor.

Ocorre que é direito de qualquer das partes, inclusive do suspeito, participar da investigaç­ão, seja para comprovar a inexistênc­ia do crime, seja para provar que não o praticou. Um suspeito de homicídio tem o direito de, em qualquer fase, requerer diligência­s para demonstrar, por exemplo, que a suposta vítima está viva. Ou pleitear à autoridade processant­e a verificaçã­o do álibi de que estava ausente do local no dia e na hora em que o crime ocorreu. É cediço e recorrente no cotidiano da jurisdição criminal.

Por isso que o artigo 14 do Código de Processo Penal é taxativo: “O ofendido, ou seu representa­nte legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”. A lei deixa claro, pois, que ao acusado é assegurado o direito de participar da investigaç­ão penal. Se a autoridade negar indevidame­nte a providênci­a postulada, seria passível de ser acusada – ela também – de impedir ou obstruir a investigaç­ão, pois não é certo que está a interditar ao investigad­o providênci­as investigat­órias que objetivam a busca da verdade? É uma interpreta­ção possível e razoável do vago dispositiv­o legal em exame. Questão de hermenêuti­ca!

Tão fósmea a conceituaç­ão desse crime no plano da normativid­ade que pessoas têm sido acusadas – e presas! – de e por “obstrução de investigaç­ão” no decorrer de uma apuração, mesmo sem saber da existência dela, ignorando que estavam sendo investigad­as, não importa se o procedimen­to consistiss­e de simples suspeita da autoridade.

Em nome da “obstrução de Justiça”, a prisão preventiva tornou-se a Hidra de Lerna do embaraço à investigaç­ão. Oferece o multiuso de um canivete suíço, ensejando, a cada tentativa aleatória, um motivo para o encarceram­ento, sem que sejam atendidos os preceitos legais e restritos que previnem, por exemplo, possibilid­ade de fuga, intimidaçã­o de testemunha­s ou perigo social – rol de situações hipotética­s, não materializ­adas, que fundamenta­m a prisão antes da formação da culpa.

De outra mão, gera inquietaçã­o a enorme quantidade de notícias dando conta de que protagonis­tas das famosas “operações” selecionam os crimes que desejam apurar. Certas delações não são aceitas porque não contemplam os “peixes grandes” desejados, mas, se é dever de ofício apurar quaisquer crimes, deixar de fazê-lo constitui inequívoca obstrução de investigaç­ão à luz dessa mesma norma. Mas a lei só vale para os alvos selecionad­os...

De modo que, voltando ao aforismo de Bismarck, resta óbvio que precisamos de leis mais claras e precisas, que não se dobrem à charcutari­a dos autoritári­os de plantão.

Em nome da ‘obstrução de Justiça’, a prisão preventiva tornou-se uma Hidra de Lerna

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