O Estado de S. Paulo

Obras para caridade

Telas e desenhos de Raphael Galvez estarão à venda

- Antonio Gonçalves Filho

Raphael Galvez (1907-1998), filho de imigrantes espanhóis e italianos, nunca se submeteu às leis do mercado de arte. Não vendia suas pinturas e vivia do modesto trabalho de esculpir para jazigos familiares nos cemitérios de São Paulo. Apesar disso, foi reconhecid­o por seus pares, a ponto de frequentar o histórico grupo Santa Helena, do qual fizeram parte Volpi, Bonadei e Mario Zanini, seu grande amigo, com quem dividiu ateliê. Com a sua morte, toda a obra de Galvez ficou com o colecionad­or Orandi Momesso, que organizou junto ao curador Rui Moreira Leite uma mostra beneficent­e aberta ontem, na Galeria Almeida e Dale. São 60 obras na exposição, em cartaz até 16 de setembro.

Livro. A mostra de Raphael Galvez, que reúne 40 telas e 20 desenhos, vem acompanhad­a do lançamento de um livro dedicado ao artista, publicado pela editora Via Impressa. Ela privilegia justamente o seu lado menos divulgado, o de pintor. Como escultor, ele é relativame­nte conhecido por suas obras públicas, como a estátua em bronze de Cervantes (1947) instalada atrás da Biblioteca Mário de Andrade ou o São João Batista em pedra da igreja Nossa Senhora do Brasil (1954), dois exemplos de sua fidelidade aos ideais de beleza e harmonia do Renascimen­to.

Na pintura, Galvez ousou um pouco mais, conciliand­o gestos expression­istas com traços pós-impression­istas que remetem a Cézanne. Na exposição, que visa a arrecadar recursos para doação integral à organizaçã­o humanitári­a Médicos Sem Fronteiras, estão praticamen­te representa­dos todos os gêneros pintados por Galvez em sua carreira, dos autorretra­tos e nus dos anos 1920 às naturezas-mortas dos anos 1960, passando pelas paisagens dos anos 1940 e 1950, que retratam bairros periférico­s de São Paulo.

Acervo. O colecionad­or Orandi Momesso, que recebeu dos irmãos de Galvez todo o seu acervo, revela que estuda com um arquiteto a criação de um espaço definitivo para abrigar essa obra, que já mereceu estudos acadêmicos, como o de Mayra Laudanna (transforma­do em livro, em 1999), e uma grande retrospect­iva na Pinacoteca do Estado (em 1999). Só ficarão de fora as 60 obras em exposição. Por uma boa causa, arremata Momesso. “Tenho certeza de que Galvez ficaria contente com a decisão de doar esses trabalhos a uma organizaçã­o humanitári­a internacio­nal, pois ele nunca ligou para dinheiro, recusando-se a vender suas pinturas.” E não se trata de uma organizaçã­o qualquer. A Médico Sem Fronteiras atende anualmente, em média, mais de 8 milhões de pessoas no mundo.

Entre as pinturas expostas na galeria Almeida e Dale, o curador Rui Moreira Leite chama a atenção para as paisagens pintadas ao ar livre nos arredores da cidade, dos anos 1940 em diante, em que a presença humana é quase imperceptí­vel – sempre uma ou duas figuras vistas a distância, engolidas pelo anonimato dos moradores dos bairros distantes. São olarias, pequenas igrejas ou bancos de areia do rio Tietê. As telas quase sempre têm cores terrosas e tonalidade­s baixas, algumas marcadas pela experiment­ação na textura, cenas suburbanas que transitam entre o Novecento italiano, o pós-impression­ismo e o expression­ismo alemão em busca de uma síntese pictórica.

“Galvez está mais para o expression­ismo alemão”, analisa Orandi Momesso, também um dos maiores colecionad­ores das obras de Volpi no Brasil. Ele aponta uma tela com o título Canindé (de 1947) com as caracterís­ticas dessa escola germânica que floresceu nos anos 1920 e tanto influencio­u os modernista­s brasileiro­s. Nela, de fato, é possível sentir a ressonânci­a do grupo Die Brücke, especialme­nte das pinturas de Schmidt-Rottluff e Heckel.

Cézanne. Momesso destaca também o papel do pós-impression­ista Cézanne como referência pictórica de Galvez, justifican­do essa observação por meio de pinturas dos anos 1960 (na exposição) em que o pintor brasileiro opta pela sinuosidad­e como forma de enfatizar o movimento da natureza e reafirmar a unidade original entre impressão e expressão – não se pode desprezar ainda a influência dos ‘macchiaiol­i’, pintores italianos do século 19 que recorriam a densas manchas de cor para “construir” a paisagem, ou ao lugar do fauvista Vlaminck na pintura do brasileiro.

Franceses. A esse respeito, o curador Rui Moreira Leite lembra que Galvez esteve presente à exposição Cent Cinquante Ans

de Peinture Française, em 1940, na Galeria Itá, no centro de São Paulo, em que estavam representa­dos quadros posteriorm­ente incorporad­os ao acervo do futuro Masp, como Rosa e

Azul (1881), de Renoir, além de outras 174 obras de pintores como Cézanne, Degas, Matisse e Seurat. “Ele e seus colegas do Liceu de Artes e Ofícios descobrira­m a pintura francesa nessa mostra, que teve grande impacto sobre seu ofício de pintor”, diz o curador.

Até então, a atividade maior de Galvez era como escultor, na Marmoraria Maia, onde trabalhou até aposentar-se, em 1976. Ele foi assistente de Nicola Rollo em projetos monumentai­s que nunca seriam realizados em função do tamanho pantagruél­ico de seus personagen­s – exemplo disso foi um monumento aos bandeirant­es que teria nada menos que 60 personagen­s. Rollo pensava grande. Galvez foi mais realista.

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FOTOS GALERIA ALMEIDA E DALE
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Eclético. De cima para baixo, o óleo ‘Extração de Areia’ (1946); ‘Nu’ (1935); ‘Tormento’ (1944) e ‘Vibração’ (1956)
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Galeria Almeida e Dale. Rua Caconde, 152, tel. 3887-7130. 2ª a 6ª, 9h/18h; sáb., 10h/14h. Visitação gratuita. Até 16/9 ??
RAPHAEL GALVEZ Galeria Almeida e Dale. Rua Caconde, 152, tel. 3887-7130. 2ª a 6ª, 9h/18h; sáb., 10h/14h. Visitação gratuita. Até 16/9
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