O Estado de S. Paulo

Para experiment­ar o samba sem limite

Juçara Marçal, Rodrigo Campos e Gui Amabis se unem para lançar disco inspirado em livro de Albert Camus

- Pedro Antunes

Tudo começou num papo de bar. Quantos desses não morrem juntamente com o último gole de cerveja, já quente, restante no copo americano? Esquecidos após uma noite de sonhos inebriados? Tais quais aquelas discussões existencia­listas que só ganham vida ao redor de uma mesa de plástico, os planos se vão. O músico Rodrigo Campos não queria que sua ideia fosse mais uma delas. Numa conversa com o artista plástico e escritor Nuno Ramos, em um boteco no bairro da Liberdade, em São Paulo, mostrou-se impression­ado com a leitura de O Mito de Sísifo, do franco-angolano Albert Camus, publicado em 1942. Comentou que estava criando algumas canções baseadas na leitura daquela obra. “Cheguei em casa e já mandei as músicas para o Nuno”, relembra Campos. Em poucos dias – às vezes dois –, Nuno enviava as letras de volta ao amigo.

Sambas do Absurdo, o disco, nasceu assim, em camadas, pedacinho por pedacinho. Veio com Rodrigo Campos e as letras de Nuno Ramos e chegou até a voz de Juçara Marçal. Por fim, as pinceladas de Gui Amabis surgiram para entortar mais a cabeça do ouvinte. Limítrofe, o álbum transpira a inquietaçã­o filosófica de Camus, seu existencia­lismo e o lidar com o fim, com o estar diante da morte.

Curiosamen­te, Juçara também já considerou O Mito de Sísifo como “sua Bíblia”, como ela brinca. “Pelas manhãs, eu abria o livro e pensava: ‘E aí, o que Mito tem a me dizer sobre esse dia de hoje?’”, ela diz e ri.

Convidada para uma apresentaç­ão em voz e guitarra, no Bar Semente, no Rio de Janeiro, em março de 2016, Juçara chamou Campos para fazer a apresentaç­ão com ela. O fato é que o show no Bar Semente foi importante para que Campos e Juçara entendesse­m o terreno que gostariam de habitar com o trabalho. O projeto Sambas era, contudo, dois terços do que viria a ser agora – faltava a chegada de Amabis. “Não sabia como iríamos gravar essas músicas”, recorda Campos.

Queriam o samba, mas não o sorveriam da fonte tradiciona­l. “É um tipo de música bastante existencia­lista”, avalia Campos, sobre a escolha do gênero no qual mergulhari­am, ao citar composiçõe­s de Nelson Cavaquinho, Cartola e Paulinho da Viola. “São sambistas existencia­listas que cantam sobre a morte, sobre viver a vida da forma mais simples possível.”

Não bastava, contudo, emular o conceito das palavras de Camus somente nos versos. Era importante quebrá-lo na tentativa de transpor o tal absurdo literário também nos arranjos e harmonias. A chegada de Amabis foi providenci­al. O trabalho solo dele é bastante avançado nas questões de texturas e camadas e cujo currículo ainda inclui a função de produtor de discos interessan­tes, como 2 Atos, do rapper mineiro Matéria Prima, e em trilhas sonoras de filmes e séries.

Diante do esqueleto que tinha violões, guitarras e cavaquinho­s de Campos e a voz de Juçara, Amabis experiment­ou pulverizar o samba. Deixou-o lá, em pequenos pedaços, o suficiente para ser reconhecív­el. “Era como se eu estivesse diante dos atores, mas ainda faltavam cenário, iluminação”, brinca ele.

Em Sambas do Absurdo, não há nome para cada uma das oito canções. A primeira música é chamada de Absurdo 8, a segunda é a Absurdo 7, a terceira é Absurdo 6 e por aí vai – e, sim, a contagem dos “absurdos” é regressiva, para confundir a cabeça dos desavisado­s. Acertam, contudo, na experiênci­a desconstru­ída. Porque quando o cavaquinho bate no ritmo do samba, supõem-se o que vem a seguir. O trio não deixa que isso aconteça, contudo.

“Certa vez, conversand­o com meu amigo Manuel da Costa Pinto, que dá palestras sobre Camus”, conta Campos, “ele me disse que gosta de encerrar dizendo que Camus é um filósofo de boteco, porque ele não é acadêmico”. Faz sentido, portanto, Sambas do Absurdo ter nascido assim, entre copos vazios e mentes anuviadas.

 ?? LUAN CARDOSO ?? Conjunto. Gui Amabis, Rodrigo Campos e Juçara Marçal desafiam o gênero SAMBAS DO ABSURDO Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, 3234-3000. Sáb. (19), às 21h. Preços: R$ 9 a R$ 30
LUAN CARDOSO Conjunto. Gui Amabis, Rodrigo Campos e Juçara Marçal desafiam o gênero SAMBAS DO ABSURDO Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, 3234-3000. Sáb. (19), às 21h. Preços: R$ 9 a R$ 30

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