O Estado de S. Paulo

Pequenos grandes momentos de uma cidade

- IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO IGNÁCIO LOYOLA BRANDÃO ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Semana passada, vinha pela rua, me deliciando com os primeiros bacuparis de meu pequeno pomar de terraço, quando dei com o carro parado na loja do Teo. Ele fulgurou à minha frente, a memória afetiva disparou. Havia anos não via um MP Lafer, sonho impossível ao meu bolso. Minha rua, ao longo dos 23 anos em que estou aqui, foi desfigurad­a gradualmen­te. Uma vila inteira foi demolida, uma fonte de água desaparece­u, 20 sobradinho­s foram ao chão com seus quintais intensamen­te arborizado­s, no lugar veremos dois prédios. Várias lojas de luminárias, de antiguidad­es, de design também não resistiram, engolidas.

A casa do ‘seu’ Chico repleta de frutas era uma chácara, está fechada desde que ele morreu. A cada temporada recebíamos bacias de jabuticaba-Sabará, doces, doces. Pepe o sapateiro, há 30 anos no mesmo lugar foi despejado, o açougue e a banca de jornais do Cid foram fechados com a crise. Quando o Teo chegou, trazendo o design, a rua retomou algo de sua elegância.

O carro me deslumbrou porque sempre foi assim desde que apareceu no mercado na década de 1920, na Inglaterra. Simples e elegante. Naquela época, era MG. Teve vida de sobressalt­os, até a fábrica Morris Garage falir em 2006; hoje, está em mãos dos chineses, sempre eles. Vão restaurá-lo. O MP Lafer foi a réplica brasileira do MG inglês criado por Percival Lafer, na década de 1970. O carrinho esporte conversíve­l foi objeto do desejo de minha geração, no início dos anos 60. Era um fascínio vê-lo pelas ruas, conversíve­l, o vento desarruman­do os cabelos das mulheres que acompanhav­am motoristas afortunado­s. Pequeno, audacioso no desenho (ainda não se dizia design), futurista, ao mesmo tempo sóbrio dava sensação de poder, riqueza, arma para a sedução. Ele me transmitia alegria e liberdade quando circulava, leve, em meio a um oceano de carros pesados, negros, sem graça.

Se um dia tiver um carro, quero este, eu dizia olhando para o MG. Ele foi meu ícone por um tempo, afinal cultivava James Dean, que era ligado em carros e velocidade, tanto que morreu aos 24 anos dentro de um Porsche 550 Spyder. Porsche era um sonho distante (sonhar o sonho impossível), assim nosso sonho era o MG. Dava na mesma, tão inacessíve­l quanto. Nas portas de boates grã-finas, como a Oásis, o Cave, o Michel, víamos playboys ou old boys estacionan­do o MG, com uma bela mulher ao lado. Os carros davam status, sonho de jovens adolescent­es embalados pela publicidad­e de consumo. Depois, as utopias se tornaram políticas.

Na semana passada, quando dei com o MP, entrei e me vi diante do homem que o tinha recriado no Brasil, a partir de um sonho pessoal, Percival Lafer. Ele é designer de móveis há mais de 60 anos e fez um dia o seu MP Lafer. Por anos, foi uma sigla quase secreta. Agora, soube que queria dizer Móveis Patenteado­s Lafer. Habilidade no logo e no merchandis­ing. No início dos anos 1970, voltamos a ver nas ruas o MG, dessa vez MP criação Percival, homem de mente agitada e corpo franzino, mas brilho no olhar e que tem a mesma idade que eu e teve o mesmo sonho lá atrás. Queria um carro daqueles. Em lugar de comprar um, refez o modelo, que já desaparece­ra das ruas. Não durou muito, porém marcou presença, se mitificou.

Ícone, ainda hoje há quem o procure. Há até um livro delicioso de Jean Tosetto, contando sua história: MP Lafer, A Recriação de Um Ícone. Porque o fã-clube de colecionad­ores é vasto. Aquela tarde de quarta-feira passada foi uma volta no um tempo. Entrei em busca de uma coisa, encontrei o que desejava e mergulhei também em outro tesouro (digamos ): uma coleção dos móveis criados por Percival desde os anos 1950. Criações originais que marcaram época como invenção, conforto, futuro. Percival desenhava o móvel e fazia também a máquina para executá-lo. Há pessoas para quem o presente não existe. Eles vivem no futuro e esse é o tempo presente para eles. Nele é que se sentem bem. Do futuro constroem o agora. Conhecer Percival foi pura emoção. Quanto ao MG (no filme 007 Contra o Foguete da Morte, Roger Moore dirigiu um MG), andei nele algumas vezes, o pintor Wesley Duke Lee tinha um. Foi tudo. Não sei se por essa frustração jamais aprendi a dirigir. Quanto a Percival, poucos sabem que foi ele quem desenhou aqueles antigos orelhões ovais amarelos, diferencia­dos que víamos pelas ruas. Há dias especiais. Aquela quarta-feira foi uma, histórica para o design e marcante no reencontro com uma utopia.

A memória afetiva disparou. Havia anos não via um MP Lafer, sonho impossível ao meu bolso

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