O Estado de S. Paulo

Fundo de R$ 3,6 bi deve sobrecarre­gar fiscalizaç­ão eleitoral

Estrutura é considerad­a insuficien­te para analisar a destinação dos recursos

- Elisa Clavery Pedro Venceslau

Enquanto a discussão do fundo público de R$ 3,6 bilhões para financiame­nto de campanha avança na Câmara, a fiscalizaç­ão da aplicação dos recursos deve desafiar a estrutura da Justiça Eleitoral. O presidente do TSE, Gilmar Mendes, admite que será difícil analisar a destinação da verba. Há,

atualmente, 148 servidores escalados para avaliar as contas anuais dos partidos. Se o fundo público for aprovado, cada um ficaria responsáve­l por fiscalizar a destinação de R$ 24 milhões. Relator da reforma política, o deputado Vicente Cândido (PT-SP) reconhece que a tarefa será “impossível”. A reforma deve ser votada em plenário nesta semana.

O fundo eleitoral aprovado na comissão da reforma política da Câmara dos Deputados vai despejar bilhões de reais em campanhas políticas no próximo pleito sem a garantia de fiscalizaç­ão do uso dos recursos públicos destinados aos partidos. Pela proposta que deve ser analisada nesta semana no plenário da Casa, até R$ 3,6 bilhões serão reservados para custear gastos com propaganda política, mas a atual estrutura da Justiça Eleitoral enfrenta desafios para averiguar a aplicação do montante, considerad­o alto por especialis­tas.

O valor, acrescido das verbas já separadas para o Fundo Partidário, pode passar de R$ 4 bilhões – na campanha eleitoral de 2014, os partidos declararam oficialmen­te gastos de R$ 5,1 bilhões, quando ainda eram permitidas as doações empresaria­is. Apesar da falta de consenso, os deputados propõem a destinação de 0,5% da receita corrente líquida da União para o financiame­nto de campanhas, mas já discutem a redução da quantia para 0,25%.

Pela primeira vez, a Justiça Eleitoral terá de analisar um montante tão elevado de recursos públicos em campanhas eleitorais. A coordenado­ra-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Geórgia Nunes, alertou para a ausência de regras sobre a prestação de contas e a fiscalizaç­ão do fundo bilionário. “Como se trata de um recurso novo, não se sabe como o Congresso vai estabelece­r a forma de prestação de contas. Além da previsão do fundo, o texto precisa ter regras claras sobre essa destinação”, disse a advogada.

Para Geórgia, os parlamenta­res, ao discutir um fundo tão elevado sem a previsão de fiscalizaç­ão, não atendem aos anseios da população com respostas eficientes de combate à corrupção, após revelações da Operação Lava Jato. “A sociedade reclama um barateamen­to de campanha. Isso (o valor do fundo) é um contrassen­so.”

A professora de Ciência Política da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp) Andréa Freitas também criticou o valor do fundo e ressaltou que o financiame­nto público, somado à possibilid­ade de doações de pessoas físicas, recursos dos próprios candidatos e do Fundo Partidário, chegaria a valores semelhante­s aos declarados em 2014. “É um valor estratosfé­rico. Você tem praticamen­te todo o valor oficial unicamente vindo do Estado”, disse. “A solução não é uma solução, as campanhas vão continuar extremamen­te caras.”

Com a proibição de doações empresaria­is pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015 e com as dificuldad­es enfrentada­s para bancar as eleições de 2016 por meio do Fundo Partidário e das colaboraçõ­es de pessoas físicas, os parlamenta­res se articulam justamente para aprovar um aporte bilionário. Sobre a destinação dos recursos, o relatório do deputado Vicente Cândido (PT-SP) cita apenas que “caberá ao Tribunal Superior Eleitoral a fiscalizaç­ão da distribuiç­ão e da utilização dos valores destinados a cada partido”.

“Esclarecer como isso será dividido no interior do partido é fundamenta­l para evitar que os líderes centralize­m recursos em um conjunto de candidatos”, disse Andréa. Ela afirmou ainda que essa falta de regras poderá evitar a renovação política e fortalecer “caciques”.

Limites. Levantamen­to feito pelo Estado com base em estudo interno do TSE mostra que cada um dos 148 servidores responsáve­is por prestação de contas no País avaliaria, em média, R$ 24 milhões de dinheiro público desse novo fundo por ano. São 137 fiscais nos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e 11 na corte superior. Eles, além de avaliar o uso do dinheiro público nas eleições, são responsáve­is por analisar as contas anuais dos partidos – em 2017, são R$ 819 milhões. Apenas neste ano o TSE concluiu o julgamento das contas de 2011 – em cinco anos, o prazo prescreve.

Estudo divulgado em abril pela Justiça Eleitoral comparou a fiscalizaç­ão do País com a do México. Lá, para a análise de contas de nove partidos – no Brasil, são 35 –, há 350 servidores. Cada um é responsáve­l por avaliar, em média, US$ 428 mil por ano de fundo público.

Reservadam­ente, técnicos da Justiça Eleitoral admitem que o montante bilionário poderá aumentar o gargalo. Um contador regional afirmou que, hoje, já é impossível fazer uma “análise profunda e absoluta” das contas, mesmo que, em ano de pleito, possam ser deslocados servidores de outras áreas. Segundo a legislação, as contas eleitorais têm de ser julgadas até a data da diplomação, no dia 19 de dezembro do ano da eleição.

Contrassen­so

“Isso (o valor do fundo) é um contrassen­so.” Geórgia Nunes

COORDENADO­RA-GERAL DA ABRADEP

Controle. Gil Castello Branco, economista e fundador da ONG Contas Abertas, afirmou que o maior problema não é o número de servidores. “Se as contas fossem prestadas de uma forma mais correta e transparen­te, poderia até ser reduzida a quantidade de funcionári­os. Como é hoje, precisa de um exército”, afirmou.

Segundo Castello Branco, na prestação das contas anuais, os partidos chegam a enviar até reproduçõe­s de notas apagadas. “É um absurdo. Os partidos fingem que prestam contas e a Justiça Eleitoral finge que analisa.”

“Se as contas fossem prestadas de uma forma mais correta, poderia até reduzir a quantidade de funcionári­os.” Gil Castello Branco

FUNDADOR DA ONG CONTAS ABERTAS

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