A lei e o arbítrio
Não é benfazejo que membros do Ministério Público, fazendo vista grossa aos ditames da lei, tratem tudo o que não lhes agrada como sinônimo de impunidade.
Dentro de suas atribuições constitucionais, a Câmara dos Deputados negou autorização ao Supremo Tribunal Federal (STF) para dar prosseguimento à denúncia contra o presidente Michel Temer apresentada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Diante dessa negativa, o ministro Edson Fachin determinou, no dia 10 de agosto, a suspensão do inquérito até o término do mandato de Michel Temer, também como determina a Constituição. No entanto, há quem difunda a ideia de que esse desfecho da denúncia contra o presidente prejudica o andamento da Operação Lava Jato.
O procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos coordenadores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, criticou, em entrevista ao jornal Valor, a decisão da Câmara dos Deputados de negar prosseguimento à denúncia. “Toda vez que uma investigação não atinge os seus objetivos, uma acusação não é processada, boa parte da população se sente desanimada”, disse Carlos Fernando. “O certo mesmo de qualquer acusação é que seja recebida e o Judiciário enfrente o mérito”, sentenciou o procurador.
A afirmação do procurador reflete uma opinião pessoal – e muito enviesada – e não o que manda o Direito. O certo, com o qual o Ministério Público deve estar absolutamente comprometido, é o cumprimento da Constituição. E no caso concreto verifica-se uma exata obediência ao mandamento constitucional. O art. 86 da Carta Magna condiciona o julgamento criminal do presidente da República pelo STF à admissão da acusação “por dois terços da Câmara dos Deputados”.
Essa disposição constitucional não representa qualquer conluio com a impunidade, sendo apenas um reconhecimento de que eventual julgamento do presidente da República tem sérios efeitos sobre o País e que, portanto, merece um cuidado especial. É do sistema democrático que matérias especialmente sensíveis à vida da sociedade sejam submetidas ao controle do Poder Legislativo.
Ao comentar a votação que negou o prosseguimento da denúncia contra o presidente da República, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima fez a seguinte avaliação: “Acho que os únicos que ganharam (com a decisão) foram os partidos e políticos que fizeram barganha e que agora têm uma posição de poder barganhar novamente”. Como é evidente, escapa ao papel do Ministério Público emitir juízos sobre o papel constitucional da Câmara dos Deputados. Há no País uma saudável e necessária separação dos Poderes, e o Ministério Público – é sempre bom lembrar – não é um deles.
Além disso, dar como fato a vinculação entre a decisão da Câmara e suposta barganha dos deputados indica uma inversão de princípios incompatível com a defesa do bom Direito, tarefa que, entre outras, compete ao Ministério Público. Nesse equivocado raciocínio, presume-se que Michel Temer seja culpado dos crimes de que foi acusado e, portanto, o voto negando prosseguimento à denúncia só poderia ser efeito de negociações espúrias. E se houve barganhas condenáveis, cabe a qualquer membro do Ministério Público levar o caso à Justiça, não deblaterar perante a opinião pública.
É benfazeja, sem dúvida, a disposição do Ministério Público de perseguir crimes e criminosos. O País precisa dessa persistente luta contra a corrupção e a impunidade, que não se restringe, como é óbvio, à Operação Lava Jato. Mas não é benfazejo que membros do Ministério Público, fazendo vista grossa aos ditames da lei, tratem tudo o que não lhes agrada como sinônimo de impunidade. Não houve descumprimento da lei na decisão da Câmara dos Deputados de negar autorização ao prosseguimento da denúncia. Não cabe, portanto, criticála, como se ela contribuísse para a impunidade.
Nesses tempos esquisitos, faz-se necessário lembrar que, onde há lei, não há impunidade. Quando o Direito é esquecido e o que vale na prática são as opiniões pessoais, a tão almejada “batalha contra a impunidade” é mera ilusão, simples manobra de quem deseja impor suas vontades.