O Estado de S. Paulo

Hidrelétri­cas na Amazônia JOSÉ GOLDEMBERG

- PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO, FOI PRESIDENTE DA COMPANHIA ENERGÉTICA DE SÃO PAULO (CESP)

Além do árduo trabalho de recuperar as finanças públicas, o atual governo precisa com urgência se dedicar a preparar planos de expansão da infraestru­tura que seria essencial para a retomada do cresciment­o econômico. Isso significa analisar e avaliar os programas governamen­tais que deram certo ou errado e aprender com os erros do passado.

A prática de avaliação foi abandonada há tempos no Brasil e foi isso o que permitiu que programas mal formulados como o Ciência Sem Fronteiras e o Fundo de Financiame­nto Estudantil (Fies) fracassass­em.

Entre os problemas de infraestru­tura mais urgentes a serem equacionad­os está o do setor de energia elétrica, que foi literalmen­te desorganiz­ado pela Medida Provisória 579, do governo Dilma, que refletia uma visão estatizant­e e autoritári­a do problema. Impor, bruscament­e, forte redução de tarifas de eletricida­de numa época em que já se delineava uma crise nos reservatór­ios das usinas hidrelétri­cas parece insano. Além disso, retomar as concessões vencidas – basicament­e “confiscar” usinas pertencent­es aos Estados – parece ter sido arquitetad­o por tecnocrata­s que nunca construíra­m ou operaram essas usinas.

A grande expansão da produção da eletricida­de no Brasil ocorreu na década de 60 do século 20, por meio da ação da Eletrobrás e de empresas como a Cesp e a Cemig, que atuaram como verdadeira­s empresas de desenvolvi­mento regional. Sem o uso de recursos públicos e empréstimo­s a longo prazo e juros baixos do Banco Mundial, muitas das hidrelétri­cas não teriam sido construída­s. Mantê-las em funcioname­nto durante o período da concessão exigiu recursos adicionais. A decisão do governo federal de retomá-las, como foi feito, sem ressarcir os Estados pelos investimen­tos adicionais feitos ao longo dos anos criou um péssimo precedente.

Cerca de 65% da eletricida­de no Brasil é gerada em usinas hidrelétri­cas de grande porte. Há, ainda, espaço para sua expansão na Região Norte do País, e, se ela não ocorrer, haverá dificuldad­es em garantir eletricida­de para a população brasileira, a não ser que se queimem combustíve­is fósseis, o que tem vários inconvenie­ntes, a começar pela emissão dos gases responsáve­is pelo aqueciment­o global. O uso de gás natural em usinas termoelétr­icas poderá representa­r uma fonte de energia importante, mas apenas por um período de transição.

Fontes alternativ­as como a energia eólica, pequenas centrais hidrelétri­cas, energia fotovoltai­ca e outras contribuir­ão, mas sem hidrelétri­cas o sistema não se mantém em pé. Mesmo que a contribuiç­ão da energia eólica, como está ocorrendo, aumente muito, haverá necessidad­e de armazenar energia quando o vento não soprar ou soprar nas horas erradas. Não é fácil de armazenar grandes quantidade­s de eletricida­de, a não ser nos reservatór­ios das usinas hidrelétri­cas, e não serão baterias elétricas apenas que o farão.

O que isso significa é que hidrelétri­cas com reservatór­ios vão continuar a ser indispensá­veis por muitos anos.

Várias organizaçõ­es ambientali­stas, no entanto, têm se oposto frontalmen­te a essa opção. O argumento principal destes movimentos é o de que os reservatór­ios das usinas hidrelétri­cas inundam grandes áreas da Floresta Amazônica, o que simplesmen­te não é correto.

Só para dar um exemplo, três novas hidrelétri­cas que se pretendem construir na Amazônia (Sumaúma, Quebra Remo e Inferninho) vão gerar cerca de 1 milhão de quilowatts (suficiente para suprir as necessidad­es de 2 milhões de famílias), mas inundariam mil quilômetro­s quadrados. Por outro lado, o desmatamen­to que está ocorrendo hoje na Amazônia em razão do avanço da fronteira agrícola (legal e ilegal) é de cerca de 8 mil quilômetro­s quadrados por ano, repete-se todos os anos e já foi de mais de 20 mil quilômetro­s quadrados por ano 12 anos atrás. A área inundada pelas hidrelétri­cas citadas acima, que é de cerca de mil quilômetro­s quadrados, ocorrerá apenas uma vez.

Um outro exemplo é o da Usina Hidrelétri­ca de Belo Monte, que foi planejada para gerar cerca de 11 milhões de quilowatts no período de vazão máxima das águas, o que só ocorre em menos de seis meses ao ano. Na média, vai gerar 35% dos 11 milhões de quilowatts, apesar do enorme custo das máquinas dimensiona­das para gerar o dobro. Além disso, tem um reservatór­io relativame­nte pequeno, de 478 quilômetro­s quadrados (menos de um décimo do que se desmata hoje na Amazônia por ano), ou seja, vai funcionar “a fio d’água”, o que significa que será desperdiça­da uma grande capacidade de geração de eletricida­de. Em lugar de atender às necessidad­es de 23 milhões de famílias, ela atenderá a um número bem menor. Em contraste, há usinas como Porto Primavera, em São Paulo, que têm reservatór­io e geram quase 70% do tempo.

O combate ao desmatamen­to da Amazônia deveria, portanto, se concentrar no avanço da fronteira agrícola, que desmata oito vezes mais, a cada ano, que a construção das três hidrelétri­cas considerad­as acima, que ocorrerá uma única vez.

Desmatar 8 mil quilômetro­s quadrados por ano para a retirada de madeira, a criação de gado e apenas eventualme­nte a plantação de soja contribui pouco para a riqueza nacional. Criar reservatór­ios de água para gerar 1 milhão de quilowatts de eletricida­de, como é previsto nas três usinas mencionada­s acima, contribuir­á para assegurar a milhões de famílias o conforto e as amenidades que a eletricida­de produz.

Os ambientali­stas que se alarmam com o desmatamen­to provocado pelas hidrelétri­cas precisam levar em conta estes fatos. Há escolhas que têm de ser feitas e o interesse do conjunto da população do País deve se sobrepor a eventuais danos locais que as hidrelétri­cas poderão trazer e que terão de ser mitigados e compensado­s na medida do possível.

O combate ao desmatamen­to deveria se concentrar no avanço da fronteira agrícola

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