O Estado de S. Paulo

A proteção de testemunha­s

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São tristement­e comuns – por nos serem desfavoráv­eis – as correlaçõe­s feitas entre o número de mortes violentas registrada­s em países conflagrad­os e as ocorridas no Brasil em decorrênci­a dos homicídios dolosos. Dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, segundo os quais o número de mortes violentas registrada­s no Brasil em 2015 superou o de outros 150 países somados, atestam uma realidade que há muito é sentida por milhões de cidadãos: a violência do varejo nas cidades brasileira­s mata mais do que guerras entre nações.

O debate sobre as causas dessa verdadeira tragédia nacional, a violência urbana, movimenta a academia e os fóruns de segurança pública, debruçados sobre os elementos sociais e econômicos que forjam uma Nação onde a inviolabil­idade do direito à vida parece não passar de um mero princípio norteador inscrito na Constituiç­ão. Entretanto, um dos elementos causadores desse fenômeno é de fácil identifica­ção: a vergonhosa impunidade que parece ser um traço distintivo da identidade nacional.

Somente cerca de 5% dos inquéritos instaurado­s para a apuração de mortes violentas no País resultam em denúncias por homicídio apresentad­as à Justiça, de acordo com um levantamen­to do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Em boa medida, a altíssima taxa de arquivamen­to dos inquéritos –e a consequent­e impunidade dos criminosos – deve-se à ineficiênc­ia das Polícias Civis dos Estados, responsáve­is pela fase de investigaç­ão criminal, que determina a autoria dos crimes.

Prestes a completar 18 anos de vigência, a Lei 9.807, de 13 julho de 1999, instituiu o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunha­s Ameaçadas (Provita), concebido pelo então Secretário Nacional de Direitos Humanos do governo FHC, José Gregori. Considerad­a “a mãe de todas as provas”, a prova testemunha­l seria resguardad­a pela proteção do Estado dada aos cidadãos dispostos a colaborar com a Justiça na elucidação dos crimes de homicídio, contribuin­do, assim, para o aumento do indicador de eficiência das investigaç­ões e, consequent­emente, para a redução da impunidade.

A despeito de suas nobres intenções, o Provita não propiciou melhora significat­iva na taxa de elucidação de crimes. Não se trata de negar a importânci­a do programa federal, evidenteme­nte. Ao contrário, o dado serve de alerta para que eventuais correções possam ser feitas e a lei cumpra o desígnio que a motivou.

Com orçamento de R$ 11,7 milhões para o ano, até julho o Provita executou apenas cerca de R$ 2,6 milhões. De acordo com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, de 2010 para cá, o número de vítimas e testemunha­s assistidas pelo programa caiu de 1.048 para aproximada­mente 500 pessoas. Sandra Carvalho, representa­nte da ONG Justiça Global, atribui a queda à “precarizaç­ão das políticas de proteção” e ao que classifico­u como “desmonte do sistema de proteção”. Em abril de 2016, a presidente cassada Dilma Rousseff assinou o Decreto 8.724, que afastou as organizaçõ­es não governamen­tais da coordenaçã­o dos programas de proteção a vítimas e testemunha­s e a transferiu para o âmbito do Conselho Deliberati­vo do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. A agilidade na autorizaçã­o de medidas de proteção por um conselho estatal não é exatamente aquela que esperam as vítimas e testemunha­s dispostas a colaborar com a Justiça, sobretudo estando ameaçadas de morte em virtude do que viram ou do que sofreram.

A despeito de relatórios que possam indicar a redução do número de homicídios em determinad­os Estados, o fato é que a sociedade brasileira se sente sob constante ameaça. A sensação de inseguranç­a é uma triste rotina para a grande maioria dos brasileiro­s. Esta realidade só começará a mudar quando os índices de impunidade atingirem patamares minimament­e civilizado­s. Isso passa, necessaria­mente, pela valorizaçã­o de políticas de segurança pública como o Provita. E, é óbvio, pela melhora dos métodos de investigaç­ão criminal da Polícia Judiciária.

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