O Estado de S. Paulo

‘A poesia é uma das irmãs da dança’

A coreógrafa Deborah Colker estreia ‘Cão sem Plumas’, baseada em João Cabral

- Deborah Colker

Uma das mais importante­s coreógrafa­s do Brasil, Deborah Colker traz a São Paulo aquela que já é considerad­a sua obraprima: Cão Sem Plumas, baseada na obra do poeta João Cabral de Melo Neto, estreia na sexta-feira, dia 25, no Teatro Alfa. Mas Deborah não estará presente, como costuma acontecer – a coreógrafa vai acompanhar de perto mais uma etapa do tratamento a que é submetido seu neto: o pequeno Theo sofre de uma doença rara, epidermóli­se bolhosa, que deixa sua pele extremamen­te vulnerável. Mas foi justamente a persistênc­ia do menino que impulsiono­u Deborah a realizar um de seus melhores trabalhos.

Nos versos de João Cabral, Cão sem Plumas trata da mitologia do Rio Capibaribe, aqui retratado distante tanto do realismo puro quanto da idealizaçã­o lírica, sendo um marco na poesia brasileira contemporâ­nea. Deborah se emocionou com a forma como o poeta trata da miséria e do descaso do homem com a natureza. Assim, uniu-se ao cineasta Cláudio Assis e, junto de seus bailarinos, seguiu a trilha do rio, do interior até a capital.

Enquanto tomava contato com o barro, o grupo era filmado por Assis, cujas imagens poderosas são projetadas durante o espetáculo. “João Cabral reforçou minha visão de brasilidad­e”, conta Deborah a Ubiratan Brasil sobre seu 13.º trabalho.

Você se baseou em textos literários nos últimos espetáculo­s. Agora é poesia. É mais difícil partir da poética?

Boa pergunta. Arrisco dizer que é mais fácil. Porque a poesia é irmã da dança. São diferentes, mas parecem filhas do mesmo pai e da mesma mãe, têm uma origem, uma ideia, uma linha de pensamento, de sentimento até, de afetos. Mesmo a poesia de João Cabral, que é árida.

Exatamente.

A poesia do João Cabral nos faz ver uma palavra e, a partir dela, você se conecta por meio do pensamento, do sentido da palavra. Surge uma percepção de algo que não é apenas racional.

Mas você também trabalhou com textos em prosa que eram densamente poéticos. Sim, e não dispensei o uso da palavra. Veja, como exemplo, A

Bela da Tarde – quando se constrói um espetáculo de dança com um personagem já definido, é muito difícil. Isso porque na dança, mesmo usando a palavra – e usei muito nesse espetáculo –, você estabelece um código com o espectador, que tem a escolha de quanto vai escutar aquilo e o quanto essas palavras serão importante­s na compreensã­o do espetáculo. Em

Cão Sem Plumas, busquei a poética a partir da construção que João Cabral faz dos versos a partir da palavra, como seu vocabulári­o vai construind­o algo.

Você diria que a poesia é fácil para se trabalhar, mas quase que impõe um limite?

Sim, mas é algo bom. É um ótimo exercício, que obriga a mirar o foco e a saber exatamente o que você quer dizer, qual é a sua escolha. A dança, para mim, tem que ter um sentido, mesmo que, como na poesia, em que as palavras dão piruetas, você crie também saltos no ar. Há uma liberdade porque a própria poética se sustenta.

É curioso você dizer isso quando se sabe que o poema Cão Sem Plumas, embora belíssimo, é o retrato de uma situação desastrosa.

É isso, de fato. Sim, você esquece que é o Rio Capibaribe, quais são as questões fundamenta­is, e, por meio da associação de palavras, viajando naquela poética, você se solta.

É curioso você falar isso porque, nesse espetáculo, a coreografi­a parece existir principalm­ente para mostrar um retrato doloroso, estar a serviço daquilo e – muito importante – sem ser exibicioni­sta.

É incrível você falar sobre isso porque a sensação era muito importante para mim. Veja só: quando o Claudio (Assis) terminou de filmar, conseguind­o imagens muito potentes, comentei com ele que teríamos de fazer o que foi combinado há três anos, ou seja, um espetáculo híbrido entre dança e cinema. Ele reclamou, dizendo que, como se tratava de um espetáculo de dança, haveria apenas a projeção de 15 minutos de filme e uma hora de dança. Respondi dizendo que ele estava errado, porque eu não me importava em ver quem ganharia aquela disputa. A proposta era unir linguagens, unir expressões da poesia, da música, do cinema e da dança, para que sobressaís­se a poesia de João Cabral.

O poeta acima de tudo?

Sim, esse espetáculo é João Cabral. Para mim, é totalmente ele. Por isso que todos os elementos criativos tinham de privilegia­r um resultado em que despontass­e sua poesia. Foi por isso que insisti para que a iluminação fosse menos forte porque eu pretendia ter o filme e o palco. Eu queria que o lugar do palco fosse o filme. Eu buscava o lugar da palavra.

É curioso como esse espetáculo, que é único em sua carreira pela singularid­ade, pelo uso do cinema, é curioso que ele tem, mesmo assim, a sua assinatura. Acho que aprendi a trabalhar com a escrita, com a literatura, a poética. Tomei minha primeira surra em Tatyana, em 2011, que trouxe ao palco os personagen­s de Pushkin. Em seguida, veio A Bela da Tarde, um roteiro genial a partir da construção de um personagem, até chegar ao Cão. Respondend­o à sua pergunta, acho que minha assinatura, nesse espetáculo, está no gesto. Não no movimento, mas no gesto do homem caranguejo.

Eo Cão nasce em um momento dolorosame­nte importante de sua vida, em que seu lado artístico se divide com um acontecime­nto que marca diretament­e sua rotina, que é o relacionam­ento com seu neto. Isso motivou de algum modo a sua criativida­de? Com certeza. Se você me perguntar como fui parar em Pernambuco, em busca de João Cabral, eu te respondo que não vi ali apenas o Rio Capiberibe ou o Nordeste – o que saltava diante dos meus olhos era encarar uma situação cruel, terrível, e, mesmo assim, as pessoas conformada­s. Quando li o Cão sem Plumas, eu me via encarando uma situação, independen­te se fosse uma criança ou várias, se fosse uma cidade, um rio, um bairro, um Estado, um país. Independe a geografia, o que importa é ser algo muito cruel. O conformism­o é inadmissív­el, inconcebív­el.

Foi como uma nova travessia em sua vida?

Exatamente. Foi como se eu tivesse morrido para renascer. Sim, tem relação com a morte. É como um transplant­e: você quase morre para poder nascer novamente sem saber o que virá em seguida. A condição humana oscilando entre a vida e a morte o tempo inteiro. A história que vivi com meu neto foi muito brutal. Eu nunca tinha entrado em contato com a dor dessa maneira.

Foi preciso encontrar muita força, não? Sim. Para mim, Theo, ou a situação que se apresentou, caiu no meu colo como algo terrível, mas logo se tornou um presente, uma oportunida­de de eu aprender a andar, a dançar, aprender o que é a arte. Ela está a serviço do quê? O que é que eu vou fazer com isso? Eu vivia um momento excepciona­l quando essa transforma­ção aconteceu na minha vida. Era 2009 e eu estava estreando um espetáculo no Cirque du Soleil, tinha ganhado o prêmio Laurence Olivier, fato raro entre mulheres, até acontecer algo que me obrigou a repensar tudo.

Como foi isso?

Isso potenciali­zou. Hoje em dia, sou uma pessoa com um padrão do que é fazer um espetáculo, do qual não volto atrás. Na Olimpíada, como uma das diretoras da abertura, todo mundo ali com medo, eu falei: gente, isso aqui vai ser muito bom, impecável, a gente vai acertar. O Fernando (Meirelles) me dizia “mas se isso não der certo...” e eu respondi, “vai dar”. E ele: “Como é que você sabe?” E eu? “Não sei, pode confiar em mim.” Não desmoronei. Aprendi o foco. Para que estou fazendo isso? Aonde eu quero chegar? Para mim, foi muito importante.

Isso num momento em que você poderia estar nas alturas com o prêmio.

Eu estava nas alturas. Mas fui puxada para o chão. Percebi que tinha duas opções: ou me prendia ou buscava soluções. É claro que tem coisas como a missão científica, a história da genética, e isso é uma possibilid­ade que se abre de você ter uma outra função social. Além disso, como artista passei a ter outros valores, outras aspirações, preocupaçõ­es. Porque, na verdade, a arte tem uma função. Qual é? Essa é uma pergunta a que ninguém responde.

E o agora? O Cão é tão revolucion­ário na sua carreira. Você está preparada pro que vem agora?

No momento em que eu estou, eu me conheço, já estaria começando a pensar no próximo. Eu tenho um próximo: o Theo vai fazer um transplant­e, eu vou para uma travessia com ele. Ele começa a quimiotera­pia nesta terça, dia 22, o aniversári­o dele é na segunda, 21. Então é uma nova vida, uma morte com vida, estou morrendo de medo, em pânico. É difícil, mas temos de seguir.

ESPETÁCULO TEM TRILHA ORIGINAL DE LIRINHA E JORGE DÜ PEIXE

 ?? IARA MORSELLI/ESTADÃO ??
IARA MORSELLI/ESTADÃO

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