O Estado de S. Paulo

A praça não é nossa

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Qual a diferença entre 100 pessoas e 20 mil pessoas em manifestaç­ões? A resposta parece óbvia, mas, no século 21, não explica tudo. A marcha pela “liberdade de expressão” em nome da supremacia branca reuniu 100 gatos pingados em Boston, apequenado­s pelos 20 mil que apareceram para denunciar a barbárie.

O atentado terrorista de Charlottes­ville colocou o Vale do Silício numa berlinda que os executivos gostariam de evitar, mas que não deve ser ignorada. Os oráculos do Vale começaram marquetand­o sua pureza, como no aposentado slogan do Google, “Não seja malvado”. Mas, até o horror de Charlottes­ville, o antigo e popular website nazista The Daily Stormer era tranquilam­ente hospedado pelo serviço de domínios de Internet GoDaddy. Em 24 horas, foi despejado e correu para o Google, que não esperou pelos protestos e defenestro­u o Daily Stormer em horas.

Mark Zuckerberg, cuja plataforma de 2 bilhões de membros com suas ferramenta­s de marketing foi instrument­al para colocar o atual ocupante da Casa Branca, reapareceu usando o conhecido tom de santimônia. Depois de Charlottes­ville, diante dos planos de novas manifestaç­ões neonazista­s, Zuckerberg prometeu que o Facebook vai “monitorar a situação de perto” e tirar do site ameaças físicas. O que o CEO de camiseta não disse é que a assustador­a tenra idade dos que marcharam em Charlottes­ville é um fenômeno da rede social. Há 15 anos, associávam­os membros da Ku Klux Klan a homens mais velhos no Sul. O aumento de grupos racistas e neonazista­s é produto da rede social. Isso é um fato, não um julgamento moral. Discutir se a rede é boa ou má é enxugar gelo. Mas não é possível lidar com o presente sem recorrer à imaginação para enfrentar este fato.

O Vale do Silício deve ser cobrado em sua demagogia. Depois de dizer que seria “arrogância” reivindica­r crédito pela Primavera árabe, em 2011, Zuckerberg soou messiânico numa carta aos investidor­es, pouco antes da oferta pública de ações que o tornou bilionário, em 2012. Disse que o Facebook deu um poder histórico ao povo de compartilh­ar e previu que governante­s vão se aperfeiçoa­r graças à democracia de curtições digitais.

Zuckerberg acertou no potencial histórico de seu website planetário, mas não na previsão beatífica. Ferramenta­s do Facebook foram usadas pela operação digital da campanha presidenci­al republican­a para muito mais do que espalhar mentiras sobre Hillary Clinton, a comunista que come criancinha­s. Foram usadas para convencer possíveis eleitores da candidata democrata a ficar longe das urnas. Essa foi apenas uma das táticas digitais orwelliana­s reveladas por jornalista­s investigat­ivos.

Volto a lembrar que a invenção da imprensa, no século 15, foi inicialmen­te usada para promover sectarismo religioso. A chegada dos celulares na África foi saudada como inteiramen­te positiva, especialme­nte pelo potencial de promover cresciment­o econômico. O que não previram é que o celular se tornou também um instrument­o de coordenaçã­o e aumento de conflitos guerrilhei­ros africanos.

Na praça do povo em Boston, prevaleceu o clichê do triunfo da civilizaçã­o sobre a barbárie. Mas a praça que nos trouxe à distopia deste momento não é mais pública. É controlada pelo Facebook, pelo Twitter e pelo Google. A praça pública com fins lucrativos que hospeda nazistas, capacita e multiplica exponencia­lmente o terrorismo de qualquer persuasão é a nossa realidade. Não é à toa que os radicais racistas em Boston definiram sua marcha patética como defesa da liberdade de expressão. Desafiam não só o Vale do Silício como o resto da sociedade a examinar a convivênci­a em democracia­s tão rapidament­e transforma­das pela praça digital privada.

O aumento de grupos racistas e neonazista­s é produto da rede social. Isso é um fato.

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