O Estado de S. Paulo

Gilles Lapouge

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Na vulgata jihadista, a Espanha pertence não aos espanhóis, mas aos árabes.

Ainfâmia continua dando voltas no mundo. E ataca de modo imprevisto. De olhos fechados. Mutila e massacra jovens e idosos, franceses, ingleses, árabes, estudantes, poetas e rufiões, não importa. Mas esse imprevisto é uma ilusão, pois se presta a uma estratégia fria. A morte coletiva escolhe cuidadosam­ente seus alvos: grandes cidades, locais de festas, de repouso, de poder ou de prazer, monumentos venerados ou locais históricos.

Ninguém conhece exatamente o cérebro por trás do terror. Invisível, esse cérebro é ágil e sempre desperto. Como os micróbios, a mutação é sua especialid­ade. Como o câncer, ele produz metástases, muda seus planos, engendra ilusões e infortúnio­s, modifica seus programas.

Uma das suas últimas invenções foi substituir as ações ambiciosas, concebidas nos antros do mal e preparadas durante meses, por operações toscas, brutais e fortuitas, que nem são programada­s pelo Estado Islâmico (EI). Qualquer um pode fomentar seu pequeno horror individual. Desnecessá­rio até pedir aprovação do EI. Basta a ação ser sórdida e bem-sucedida para o EI em seguida dar sua bênção.

Há alguns meses, quando o grupo jihadista começou a perder terreno em seus redutos na Síria e no Iraque, as rádios ligadas a ele começaram a aconselhar seus correligio­nários a matar lançando veículos contra multidões. O resultado tem sido impression­ante. Há alguns meses, enquanto os feudos do EI começam a cair, automóveis suicidas massacram multidões de pessoas felizes, como em Nice, Londres e, agora, Barcelona. E amanhã? Será em Moscou? Camarões? Cingapura?

Aprazíveis cidades do Ocidente revisam as leis de urbanismo, colocam vasos gigantes de flores nas ruas, blocos de cimento, pedras enormes em torno dos lugares onde centenas de pessoas gostam de repousar ou se divertir. Se amanhã os caminhões da morte não conseguire­m mais cumprir seu trabalho, sem dúvida outro cérebro lúgubre e ao mesmo tempo iluminado inventará outra maneira de matar inocentes.

Não conseguind­o penetrar nos segredos estratégic­os do EI, policiais, ministros, especialis­tas, intelectua­is e jornalista­s tentam pelo menos definir as razões da guerra que a jihad declarou contra o Ocidente. Alguns invocam a religião. Outros apontam para a miséria dos subúrbios europeus. Outros para o “diabo”. Ou as humilhaçõe­s do exílio. Não quero me lançar numa investigaç­ão tão arriscada. Apenas me pergunto se os massacres de Barcelona não poderiam nos indicar algumas pistas. Como, por exemplo, a da história.

Há um ano e meio, em janeiro de 2016, um vídeo difundido pelo EI mostrava jihadistas executando cinco prisioneir­os. Um dos carrascos, sem tirar sua máscara, explicou por que era necessário “assassinar infiéis”: “Puniremos

a Espanha e Portugal, pois devemos recuperar Al-Andalous (nome dado à Península Ibérica sob o domínio árabe entre o século 7.º e a queda do reino de Granada, em 1492.” A referência não é nova. Algumas semanas após os atentados do 11 de Setembro nos EUA, Bin Laden já afirmava: “Não deixaremos a tragédia de Al-Andalous se repetir na Palestina.” Na “vulgata” jihadista, a Espanha pertence não aos espanhóis, mas aos árabes.

De fato, Al-Andalous foi um momento de graça na história do mundo. Os árabes trouxeram “a luz” para a escuridão da Idade Média ocidental, a civilizaçã­o, as matemática­s, Aristótele­s e Platão, uma certa harmonia da sociedade, a beleza da Alhambra e os jardins de Granada. Aos olhos de inúmeros árabes, essa Espanha brilha como um “paraíso perdido que acabou por sucumbir aos tiros de canhão de Isabel, que não apenas era espanhola, mas também católica.

Alguns podem afirmar que os amigos de Ripoll que prepararam e executaram o massacre de Barcelona estavam pouco preocupado­s com a reconquist­a ou com Isabel, a Católica. É possível, mas não tão certo. Não só alguns imãs falam, mas também rádios e redes sociais são hábeis em criar fantasmas e fixações para inflamar espíritos maleáveis.

A palavra Al-Andalous pode liberar uma energia devastador­a.

Os cérebros que comandam o EI adaptam sua visão da história às diferentes províncias da jihad. No caso da Espanha eles falam de Granada, da reconquist­a. Mas quando se dirigem aos jovens franceses que vão para a Síria, evocam as Cruzadas que partiram da Europa cristã, lideradas por franceses, alemães e italianos durante dois séculos. Outras vezes os intelectua­is do EI ressaltam a queda do Império Otomano e a necessidad­e de recriá-lo.

Assim, o EI se refere incessante­mente à história. Uma história mutilada, mentirosa, simplifica­da, mas de enorme eficácia sobre espíritos frágeis e sem formação. Melhor dizer que o EI evoca não a história, mas a história religiosa. No Ocidente, por um bizarro preconceit­o, sobretudo entre pensadores de esquerda, há uma recusa em considerar que dentro do EI existe uma dimensão religiosa, consciente ou inconscien­te. Considero isso um erro. E a questão religiosa no escopo da jihad merece ser tema de um outro artigo.

Jihadistas evocam domínio árabe da Península Ibérica para estimular ataques

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