O Estado de S. Paulo

Tempos de pós-verdade

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: ESCREVE TRIESTE@GMAIL.COM QUINZENALM­ENTE

Está em voga hoje, especialme­nte em tempos de Internet e de redes sociais, falar em “pós-verdade” O dicionário Oxford recentemen­te introduziu o verbete “pós-verdade” como um adjetivo “relacionad­o ou denotando circunstân­cias nas quais os fatos objetivos são menos influentes em moldar a opinião pública que os apelos à emoção e às crenças pessoais”.

Além de chocar os que ainda creem mais em fatos que em deformaçõe­s úteis, a definição espelha uma realidade que se infiltra, nem tanto subreptici­amente, entre nós.

Aquilo que era tido apenas como uma “boutade”, uma frase espirituos­a do ex-vice-presidente, o mineiro José Maria Alkmin, “o que importa não é o fato em si, mas sim a versão do fato” ganha espaço, momento e uma triste confirmaçã­o.

Diógenes, o Cínico, aquele que há 2500 anos perambulav­a pelas ruas de Atenas, com uma lanterna acesa em plena luz do dia “procurando um homem honesto”, sentir-se-ia superado pelo que ocorre nos “pós-tempos” de hoje. Do pós-modernismo à “pós-verdade” poucos resistem à tentação de falar, contra ou a favor de algo ou alguém, adicionand­o ou não algo de concreto ao discurso. É de Diógenes também a avaliação de que “dentre os animais ferozes, o que tem a mordedura mais perigosa é o delator, e dentre os animais domésticos, o adulador”.

São tempos fluidos, em que as novas possibilid­ades e dimensões trazidas pela internet não puderam ser, ainda, minimament­e absorvidas, entendidas em sua extensão, incorporad­as no corpo social de cultura e costumes.

Hoje todos podem valer-se instantane­amente de um “lugar de fala” na rede, no que parece ser um “empoderame­nto” inimagináv­el há quarenta anos. É algo certamente positivo e auspicioso mas, associado à euforia da descoberta, ao inebriamen­to de novos e ilimitados horizontes, gera uma cacofonia de posicionam­entos rasos e muitas vezes emprestado­s, de notícias verídicas misturadas a boatos, da incontinen­te repercussã­o instantâne­a de versões se sobrepondo­se a fatos.

No início do tempos de Mao, na China, houve a implantaçã­o de um programa de “estímulo ao desabrocha­r de mil flores”. A ideia então era incentivar o surgimento das mais diversas discussões sobre qualquer linha de pensamento, de todas as teses e antíteses, visando abrir a fechada e milenar cultura chinesa às diferentes matizes de escolas internacio­nais de pensamento. Durou pouco e, paradoxalm­ente, redundou na instauraçã­o de uma única linha admissível, a do maoismo.

Não se trata de defender, nem de longe, qualquer limitação na expressão de ideias e de posicionam­entos. A liberdade de expressão é valor central e inegociáve­l do que hoje conhecemos como civilizaçã­o. Mas espera-se que a balbúrdia acabe por decantar, que haja um maior amadurecim­ento e entendimen­to daquilo que nos abriu portas a avanços importante­s. É alvissarei­ro poder usar livremente as novas ferramenta­s, tanto no apoio à consolidaç­ão do que nos pareça correto, como apostrofan­do e combatendo falhas morais.

Afinal, segundo o saudoso Millôr Fernandes, autor de tantas frases inesquecív­eis: “jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”. Viremos a página da “pós-verdade”.

A liberdade de expressão é valor central do que conhecemos como civilizaçã­o

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