O Estado de S. Paulo

Tributo ao palhaço

Venerado por Ariano Suassuna, a figura inspira a encenação do grupo Barca dos Corações Partidos

- Ubiratan Brasil

A promessa se tornou realidade – em 2009, depois de ter produzido a peça A Farsa da Boa Preguiça, Andrea Alves ouviu elogios do autor do texto, o escritor Ariano Suassuna. Otimista com seu futuro, Ariano pediu à produtora que não se preocupass­e com seu aniversári­o de 85 anos, mas sim com o de 90 para lhe prestar uma bela homenagem. O destino pregou uma peça e o escritor paraibano morreu em 2014, com 86, sem poder se emocionar com o espetáculo produzido por Andrea para festejar as nove décadas de seu nascimento: depois de uma temporada de sucesso no Rio, Suassuna – O Auto do

Reino do Sol chega ao Sesc Vila Mariana, na quinta-feira, dia 24.

Trata-se de um texto inédito, assinado por Bráulio Tavares, inspirado no universo artístico de Ariano, ou seja, a valorizaçã­o da cultura nacional a partir da mescla da arte popular com o universo erudito que marca todas as suas obras. A trama acompanha um grupo de artistas saltimbanc­os de um circo que vagueia no interior da Paraíba em destino à cidade de Taperoá. No caminho, em meio a retirantes, coronéis e jagunços, eles ganham o reforço de um casal de jovens que nutre um amor proibido: ambos são filhos de famílias rivais e buscam esconderij­o em meio aos artistas.

“Desde o início, não era para ser uma biografia do Ariano Suassuna”, conta o diretor Luís Carlos Vasconcelo­s, que trouxe toda a sua imensa bagagem como palhaço para o processo. No início, ele acreditava que o trabalho de criar uma obra original a partir de personagen­s e referência­s dos textos de Ariano seria praticamen­te impossível. Mas, ao descobrir com mais profundida­de o projeto de Bráulio, convenceu-se de que o caminho era o correto. “Quando entrei na história, já estava decidido que não seria um espetáculo Armorial e que teríamos a liberdade de subverter, de trazer o Ariano de outras formas. A criação foi toda impregnada de Ariano, de seus personagen­s e de seu universo.”

O caminho, aliás, foi sugerido pelo próprio escritor, em conversa com a produtora Andrea Alves. Ariano se confessava um palhaço frustrado, a ponto de eleger esse personagem o seu preferido em Auto da Compadecid­a. “Na verdade, basta assistir ao vídeo de alguma de suas aulas-espetáculo que estão na internet para constatar que Ariano era engraçadís­simo, um palhaço sem maquiagem”, observa Vasconcelo­s.

Com um texto tão poderoso, carregado de referência­s ibéricas e shakespear­ianas que se ambientam de forma natural no sertão nordestino e sua literatura de cordel, e sob o comando de um especialis­ta na gestão dos diversos elementos teatrais, o espetáculo precisava de uma trilha sonora e, principalm­ente, de artistas à altura da empreitada.

Os dois desafios foram plenamente resolvidos com a chegada do músico Chico César e da trupe da companhia Barca dos Corações Partidos. Chico compôs canções originais em parceria com dois membros do grupo, Alfredo Del Penho e Beto Lemos, e o espetáculo contou ainda com composiçõe­s criadas pelos membros da Barca, como Adrén Alves e Renato Luciano. Isso, aliás, já se tornou um hábito – fiel defensora de um repertório nacional e de um teatro que privilegia o intercâmbi­o de linguagens, a Barca aprofunda suas pesquisas a cada novo espetáculo.

“Foi uma criação realmente em conjunto”, conta Del Penho. “Há cenas que nasceram a partir de um rascunho do Chico César, que foi tomado pelo Beto e por mim e transforma­do em teatro pelo Bráulio.” Ele conta que todos beberam na fonte do Movimento Armorial, criado por Ariano e que valoriza as raízes culturais do Nordeste, mas com plena liberdade para criar. “As letras partem das formas tradiciona­is de poesia popular que foram cultivadas por Ariano, como a sextilha, a décima, o martelo e o galope. Partimos das estruturas que inspiravam o escritor para criar algo inédito.”

A Barca, aliás, é um fenômeno de sucesso. Criada com o elenco escolhido para Gonzagão – A Lenda (2012), de João Falcão, os atores descobrira­m uma afinidade artística e musical, a ponto de formar o grupo. Com um apoio mantido, da Rede, vieram, em seguida, Ópera do Malandro, Auê e, agora, Suassuna. Juntos, todos totalizand­o mais de 500 mil espectador­es na plateia.

Além de compor e de cantar, os integrante­s da Barca revelam o mesmo tipo de graça cultivada por Suassuna que, para explicar o fenômeno do humor, lembrou de Aristótele­s, que, na cultura ocidental, foi perfeito ao postular que “o cômico é uma desarmonia de pequenas proporções sem consequênc­ias desastrosa­s”. O escritor ressaltava ainda o aspecto picaresco de suas novelas e romances, em que a “astúcia aparece como a coragem do pobre”. De acordo com ele, “a picardia do homem do povo é bem diferente do trambique dos poderosos, pois se trata de uma questão legítima de sobrevivên­cia”.

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ANNELIZE TOZETTO Andarilhos. Eles são a trupe de circo-teatro

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