O Estado de S. Paulo

Tesouros postais

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Sorte nossa que Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava tenham sido sensíveis e aplicados guardadore­s de papéis – bem mais que papéis, na verdade: tudo aquilo que tivesse, para eles, o poder de reativar lembranças esmaecidas ou mesmo apagadas. Sem isso, Drummond não teria, já passado dos 60 anos, podido nos deixar os versos da série memorialís­tica Boitempo, destilada em três volumes que chegaram a nós a partir de 1968. Muito menos teria podido Pedro Nava produzir, ainda mais velho, na altura dos 65, as mais de 2.500 páginas de suas memórias, monumento em seis livros iniciado com Baú de Ossos, em 1971, e só interrompi­do com o suicídio do autor, em maio de 1984, quando já escrevia as primeiras páginas do sétimo volume, que iria se chamar Cera das Almas.

Quando estive com Nava mais demoradame­nte, em maio de 1983, entrevista­ndo-o para um perfil na IstoÉ, deixei cair o queixo ante os arquivos do escritor. Lembro de fichários em que guardava registros os mais diversos, não raro surpreende­ntes, anotados em fichas que ele dedilhava sempre que se via às voltas com novo livro ou capítulo, pinçando aquelas que lhe parecessem utilizávei­s. Em seu apartament­o, na Glória, havia enorme quantidade de pastas nas quais guardava até mesmo partituras, pois, mesmo não sabendo ler música, ali encontrava algo capaz de recompor a lembrança de um baile ou sarau há muito esquecido. “São coisas”, disse ele, “que me permitem cutucar a memória involuntár­ia.” Era também com esse objetivo que Pedro Nava, dotado ainda para as artes visuais, desenhava coisas, lugares e personagen­s de seu passado.

Drummond me pareceu – antes mesmo que eu mergulhass­e em seu acervo – ainda mais organizado e criterioso na guarda de seus tesouros, não tivesse sido ele, na maior parte de vida, um impecável funcionári­o público. Foi ele quem recomendou a Nava não destruir materiais utilizados na feitura de um livro. Numerosas cartas que Drummond recebeu trazem no alto informaçõe­s sobre a resposta dada. E em suas pastas pode o pesquisado­r se deparar com inesperada miscelânea, como com uma pequena flor colhida no túmulo de sua mãe no dia do enterro do irmão Flaviano. Ou com a diminuta chave de ferro, de que falei em outra ocasião, com a qual se fechou o caixão de sua avó paterna, mais de um século atrás.

Sorte nossa, também, que Drummond e Nava tenham conservado a correspond­ência que trocaram entre 1926 e 1983. Não muito volumosa, diga-se, uma vez que na maior parte da vida os dois dividiram as mesmas cidades, primeiro Belo Horizonte, depois o Rio de Janeiro, porém preciosa. Cartas, cartões, bilhetes, poemas. O Drummond carteador comparece menos que o amigo, e quase sempre é conciso e direto, e não se permite transborda­mentos do coração. Também como correspond­ente, pois, ele é o contrário de Pedro Nava, quase tão derramado nas cartas como em suas memórias.

Guardado até recentemen­te, o batepapo postal dos dois grandes escritores, ligados por amizade vitalícia desde 1922, está agora nas livrarias, irrepreens­ivelmente editado e anotado por quem estende do assunto e dos escritores, Eliane Vasconcell­os e Matildes Demetrio dos Santos, num belo livro, copiosamen­te ilustrado, que teve como maestrina a editora Maria de Andrade, da Bazar do Tempo. O título – Descendo a Rua da Bahia – evoca o território que Nava e Drummond transforma­ram em trincheira informal do movimento modernista na capital mineira, nos anos 1920, ao lado de outros moços que também abririam espaço na literatura brasileira do século passado, como o poeta Emílio Moura e o romancista Cyro dos Anjos.

Já não existe a Confeitari­a Estrela, onde a patota batia ponto todos os dias, em rodadas que incluíam leitura e apreciação coletiva de poesia e prosa recém-produzidas. Foi ali que certa noite Pedro Nava, tendo lido um poema de Drummond, emitiu um julgamento do qual logo seria o primeiro a rir: “É bom”, Carlos, disse Nava, “mas o seu forte é a prosa”.

Era também do Estrela que alguns daqueles moços, empapados de lírico inconformi­smo, mas principalm­ente de chope, saíam para sacudir a pasmaceira da noite de uma Belo Horizonte que passara pouco dos 50 mil habitantes e que, inaugurada em 1897, era ligeiramen­te mais velha do que eles. Trocar nas fachadas as placas de médicos, dentistas e advogados. Escalar os arcos do viaduto de Santa Teresa, inaugurado em 1929, moda lançada, de cara limpa, pelo já pai de família Carlos Drummond de Andrade, a caminho de casa, no bairro da Floresta. Tocar fogo em bonde em protesto contra o aumento, não do preço da passagem, mas do ingresso do cinema. Ou na casa de amigas, onde certa madrugada Drummond e Nava provocaram um início de incêndio, na esperança, há quem conte, de ver as moças emergindo de camisola. Não deu certo, e por pouco a dupla não acabou em cana. “Foi um foguinho de nada”, contava Nava, “queimou apenas as nossas reputações...”

Sai em livro a correspond­ência que Drummond e Pedro Nava trocaram ao longo de 57 anos

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