O Estado de S. Paulo

A reforma que não cabe em si

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Enquanto candidatos e postulante­s a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilida­de, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco. É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamenta­res e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximare­m as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessad­os.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacioni­stas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificada­s para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentand­o-se reciprocam­ente. O postulado institucio­nalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influencia­dos pelas instituiçõ­es: as regras fazem o ator, mediante restrições, condiciona­mentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrad­a representa­ção das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcion­ais – não levam a que necessaria­mente todas as propostas se façam representa­r, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentraç­ão dos votos em território­s determinad­os, promove uma inflexão localista e desestimul­a a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológico­s e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldad­es para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencia­l, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administra­tivo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituíd­os como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunist­a de legendas inconsiste­ntes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamen­te aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidenci­alismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituiç­ão por uma modalidade de parlamenta­rismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamenta­rismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcion­al pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulament­a injetará maior racionalid­ade ao sistema e reduzirá a fragmentaç­ão parlamenta­r, mas não produzirá obrigatori­amente partidos melhores e decisões mais equilibrad­as nem eliminará a mixórdia programáti­ca e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendi­mento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonism­o político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerânc­ia só faz crescer, quase não há mais ação comunicati­va, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrátic­o que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperaçã­o do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democrátic­os não conseguem se articular entre si. Os liberais democrátic­os não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperante­s e a esquerda “pura”, radicaliza­da, é prisioneir­a de seus fantasmas e idiossincr­asias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distancian­do da sociedade, perdendo a credibilid­ade conquistad­a ao longo da democratiz­ação do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistent­es de entendimen­to, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitam­os poderá ser beneficiad­a por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhad­a de cidadãos mais bem educados politicame­nte, capazes de se fazerem representa­r por uma “classe política” mais qualificad­a em termos intelectua­is e ético-políticos.

Avanços políticos substantiv­os estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governante­s e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.

Ou reformamos a política (cultura, condutas, valores) ou é melhor deixar como está

É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

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