O Estado de S. Paulo

A jiboia mais rara do mundo

Cientistas reencontra­m na Mata Atlântica uma das cobras mais raras do mundo

- Herton Escobar Tiago Queiroz

Considerad­a quase um mito da Mata Atlântica, a Corallus cropanii foi descoberta em 1953. Desde então, pesquisado­res tentavam encontrar outro exemplar vivo, o que só aconteceu neste ano, no Vale do Ribeira. Agora, o animal está sendo monitorado na natureza.

Ofacho de luz da lanterna rasga a escuridão da noite, conectando os olhos do cientista aos da serpente no topo da árvore. Embrulhado como uma lagarta dentro de sua rede camuflada, o biólogo Bruno Rocha está atento a cada movimento da cobra, que ele mesmo soltara na floresta algumas horas antes.

É um momento tenso e emocionant­e. Rocha sente como se todos os herpetólog­os do mundo estivessem espiando sobre seus ombros. Afinal, a cobra na outra ponta daquele túnel de luz não é uma serpente qualquer: é uma Corallus cropanii. Ninguém nunca viu esse bicho na natureza. Rocha é o primeiro; e espera-se que não seja o último.

Considerad­a a jiboia mais rara do mundo, a Corallus cropanii é quase um mito da Mata Atlântica. A espécie foi descoberta em 1953, quando um morador de Miracatu, no Vale do Ribeira, sul do Estado de São Paulo, chegou ao Instituto Butantã carregando uma cobra estranha, de ventre amarelo e com uma série de “furinhos” na lateral da boca.

O bicho foi parar nas mãos do chefe da Herpetolog­ia do Butantã, o renomado Alphonse Hoge, que tratou de batizá-la e descrevê-la como nova espécie.

Depois disso, muitas expedições científica­s se embrenhara­m nas matas do Vale do Ribeira procurando pela espécie. Sem sucesso. “Muita gente procurou por essa cobra durante muito tempo, mas ela nunca apareceu. Era um grande mistério”, conta o herpetólog­o Hussam Zaher, orientador de Rocha no Museu de Zoologia da Universida­de de São Paulo (MZUSP).

Outras cinco cobras foram encontrada­s apenas, em mais de 60 anos, e nenhuma delas viva. Todas chegaram às mãos dos pesquisado­res sem vida, mortas por moradores da região (mais informaçõe­s nesta página).

No Vale do Ribeira, matar cobra é de praxe. Não por maldade, mas por medo, e desconheci­mento. “Aqui não tem socorro, rapaz. Se tivesse era fácil, mas não tem. Então a gente tem medo”, explica Nadir Rosa Teixeira, moradora do Guapiruvu, um bairro distante do município de Sete Barras, onde os últimos três exemplares de Corallus cropanii foram encontrado­s.

A cobra que está na mira da lanterna de Rocha agora só não foi morta graças a um esforço de educação ambiental que ele e outros biólogos ligados ao MZUSP e ao Butantã fizeram na região, ensinando os moradores a reconhecer e a lidar com diferentes tipos de cobras – incluindo a C. cropanii.

Em outubro de 2016, Rocha deu algumas aulas sobre cobras no Guapiruvu, e aproveitou para distribuir folhetos e cartazes com informaçõe­s sobre aquela tal serpente misteriosa – que ele passou a chamar de jiboia-do-ribeira, em homenagem ao Vale e aos seus moradores. O material estampava fotos da espécie e pedia que as pessoas ligassem para ele, caso encontrass­em uma cobra dessas por aí.

Descoberta.

Era sábado, 21 de janeiro, quando o telefone tocou. Por sorte, o celular de Rocha tinha créditos naquele dia. Do outro lado da linha estava Paulo Vinicius Teixeira, de 24 anos, morador do Guapiruvu. Ele e mais quatro amigos haviam topado com uma cobra muito parecida com a do cartaz, em uma estrada de terra do bairro. “Tem os furinhos na boca?”, indagou o biólogo. Sim. “Beleza, então dá um tempo que eu tô indo aí.”

O bicho estava sob a guarda de André Bezerra, amigo do Teixeira, que estava com ele quando acharam a jiboia. Por muito pouco ela não foi morta.

O primeiro do grupo a avistar a cobra pegou logo um pedaço de madeira para assassiná-la a pauladas, achando se tratar de uma jararacuçu – uma víbora peçonhenta, muito comum na região. “Sai, sai, sai”, gritava ele. Por sorte, o porrete estava podre e quebrouse no ar antes de atingir a cobra, dando a Bezerra e Teixeira a chance de se aproximar e perceber que havia um quê de jiboia naquela jararacuçu. Pegaram a serpente, botaram num saco, e chamaram o biólogo.

Bezerra foi cauteloso. Só aceitou mostrar a cobra aos pesquisado­res depois de garantirem que ela permanecer­ia no Guapiruvu. “Ele estava preocupado que a gente ia levar o bicho embora e não voltar nunca mais. Eu expliquei que não, que a ideia era estudar a cobra na natureza, e que o lugar dela era ali, no Guapiruvu”, relata Rocha.

“A hora que ele falou ‘vou pegar’, já comecei a tremer”, diz. “Aí ele veio, mostrou, e era.” O mito Corallus cropanii, em carne e osso. Uma fêmea, com 1,7 metro, 1,5 quilo, e o mais importante de tudo: viva.

Soltura.

Os meses seguintes foram dedicados a planejar os procedimen­tos de soltura e monitorame­nto da cobra. As caracterís­ticas básicas da espécie já são conhecidas: é um bicho calmo, sem veneno, e que mata suas vítimas por constrição, como é típico das jiboias.

Mas quase nada se sabe sobre o seu comportame­nto na natureza. Será que vive no chão ou nas árvores? O que come? Como encontra seus parceiros e com que frequência se acasala? A única forma de saber é espionando a cobra dentro da mata. E isso não é fácil.

Para ajudá-los nessa tarefa, os pesquisado­res grudaram ao corpo do bicho dois transmisso­res de rádio, que permitem localizá-lo de diferentes ângulos e distâncias, tanto na horizontal quanto na vertical.

A soltura da cobra foi marcada para 5 de agosto, e o local escolhido foi justamente o corredor de mata para onde ela estava rastejando quando foi intercepta­da, entre uma plantação de banana e outra de palmito pupunha, que são a base da economia local. Toda a comunidade do Guapiruvu foi convidada, e cerca de 40 pessoas comparecer­am.

Quando a cobra saiu da caixa, era celular filmando e fotografan­do para todo lado. Parecia tapete vermelho do Oscar. O bicho, que normalment­e seria morto a pauladas, virou mascote da comunidade.

“Essa serpente para nós é fundamenta­l; para as pessoas entenderem, cara, que a biodiversi­dade é importante”, diz o agricultor e líder comunitári­o do Guapiruvu, Gilberto Ohta. “Com toda essa valorizaçã­o do público externo, a comunidade está começando a entender.”

“Para a Biologia esse é um momento histórico”, vibrou o pesquisado­r Francisco Franco, do Butantã, que fez o primeiro registro de uma C. cropanii no Guapiruvu, em 2009, com base apenas em uma foto. “É como você ver um dinossauro, me sinto muito honrado de estar aqui.”

Monitorame­nto.

Tão logo se viu livre na natureza, a jiboia começou a procurar uma árvore para escalar, confirmand­o as suspeitas de que é um bicho predominan­temente arborícola – ou seja, que passa a maior parte da sua vida nas árvores. Primeiro mistério solucionad­o.

Os transmisso­res de rádio parecem não interferir com a locomoção do bicho. O “bip-bip” do sinal se intensific­a quando a antena é apontada na direção certa. É como se fosse o pulso da cobra. “É o som que acalma nosso coração”, brinca Daniela Gennari, mestranda do Instituto do Biociência­s da USP e parceira de Rocha no projeto. Sem o equipament­o, seria impossível segui-la.

Em 15 dias, a cobra – também apelidada de Dona Crô por uma garotinha da comunidade que ajudou a cuidar dela – passou por quase 15 árvores diferentes. Em linha reta, na semana passada, já estava a quase 500 metros do ponto de soltura.

Os biólogos acompanham a distância, observando e anotando tudo sobre o comportame­nto da cobra, o tipo de árvore, os horários, a temperatur­a, a umidade do ar. “Tudo sobre os hábitos de vida dela é interessan­te; tudo é novidade”, diz Rocha. A cereja no bolo seria encontrar outras Corallus cropanii pelo caminho. “Talvez ela seja rara para a ciência, mas não para a natureza.”

O monitorame­nto prossegue, sem data para acabar.

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TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO
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Órgãos sensoriais. As fossetas labiais são uma das caracterís­ticas marcantes da espécie
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Rastreamen­to. Biólogos usam aparelho de rádio para achar a serpente

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